domingo

Parabellum


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"Nóis descarrega o pente / Se atravessa nossa frente
 Vários guerreiros valentes / Com ódio no coração"
 Trem bala desgovernado, Menor do Chapa


Quando o carro parou em frente aos três, Beto sentiu que todos os seus órgãos haviam congelado. Não era um carro oficial, mas ele reconhecia Juliano, o policial que vinha dentro. Se existe uma coisa que a gente não esquece, é o rosto de quem já nos deu uma surra. Por mais que façam anos, por mais que te arranquem os olhos, sempre vai tá lá o rosto do cara misturado nas secreções e pulsos elétricos que hermeticamente armazenam a nossa desgraça naquilo que a gente chama de passado. 

E bota passado nisso. Já iam lá uns quinze anos desde que conversaram pela última vez. Na época, essa vida de PM tinha começado fazia pouco pra ele. Juliano ficou fascinado com a coisa toda, mostrava a apostila com os métodos de entrada tática, técnicas de tiro, combate com tonfa, mostrava as balas, o trintaeoito. Finalmente, tinha pela frente alguma perspectiva, ia ganhar uma grana, ter um emprego estável. Até curtia os bicos nas baladas, dava pra beijar umas meninas e tal, mas pagava muito pouco. Tava na hora de crescer, de ajudar a mãe dele que criou três moleques sozinha. Tava na hora de ser homem.

Naquele verão, quando Beto voltou pra Araranguá, um amigo tinha contado pro Juliano que ele tinha beijado um cara numa festa da faculdade. E Juliano prometeu encher ele de porrada, pra deixar de ser um viado maconheiro - aí ele já tava deduzindo. Ou melhor, que ele ia surrar a frescura pra fora de Beto. Ou melhor, que ele ia enfiar a virilidade na porrada de volta pra dentro de Beto. Enfim, diz que foi quase uma hora disso, não chegou a conclusão se dentro ou fora. O que aconteceu de fato é que ninguém consegue se esconder pra sempre e Beto acabou levando uma surra. E os dois pararam de se falar.

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Beto olha bêbado pra bala do 38. 

Esse disquinho redondo é o detonador, sei lá se é esse mesmo o nome. O cão bate aqui e cria uma faísca que detona a pólvora dentro do cartucho. O projétil é isso daqui, essa pontinha de chumbo. Acho que é chumbo. Tem vários diferentes. Tem um que despedaça quando no impacto e espalha dentro do corpo, mas a gente não usa esse. Diz que os pedaços chegam a ricochetear na costela, que é difícil alguém sobreviver por causa do sangramento. A polícia usa balas que causem o maior "soco", pra derrubar o cara mesmo.

Beto puxa a vareta do extrator, expõe o tambor e municia o revólver. Puxa um pouquinho o gatilho, vê o cão pender pra trás. Marcelo finge que a tonfa é o próprio pau sentado no sofá atrás de Beto. Juliano se assusta e segura a arma pelo tambor, mas a força quebra o sutil equilíbrio do gatilho e a pólvora explode. Marcelo se mija inteiro.

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Boa tarde

Boa tarde

Ficou muito bom esse galpão. Eu não sabia que vocês tinham um sítio.

Na época a gente não tinha.

...
...
...

Posso falar com o Beto um instante.

O pai se levanta, leva a cuia e a térmica. A mãe prendeu os cabelos, fixa o olhar em Juliano por um tempo. E vai.

Fiquei sabendo que fizeram um BO no teu nome.

Olha, cara, se você veio me buscar pra prestar depoimento...

Ah, não. Relaxa. Eu acho difícil alguém se dispor a investigar essa parada. Quase não tem polícia civil aqui. O Marcelo mesmo, deu uma facada num moleque e nunca foi preso, o dois se acertaram por fora da justiça. É muita briga pra polícia ficar se preocupando.

...

Cara, ninguém morreu, é isso daí.

Tá, mas o que foi então?

Ué, fiquei sabendo que tu andava por aí. Decidi vir conversar.

Beto olha pra tala no dedo, olha pra cara do Juliano sorrindo, pro pais lá dentro comendo milho, pra cara do Juliano de novo.

Faz pouco tempo que eu cheguei. 

Tu veio nessa moto?

Sim.

Tu vai te matar nessa porra aí.

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Primeiro ele jogou uma pedra.

Aí deu umas porradas, disse umas coisas, reage porra, finge que tu é homem, mas é palhaçada mesmo, tu saiu daqui gostando de mulher, foi pra Floripa pra dar a bunda era só o que me faltava, e come soco.

E daí o Beto meio que encaixou um soco na cara dele, mas meio de raspão, meio fraco já.

Juliano derrubou ele no chão de novo, meteu uns chutes, tu tem coragem de me bater? Tu? Tu tem coragem de me bater? Levantou ele pela barra da calça e jogou contra o poste.

Tá chorando? Não chora porra. Dá-lhe soco. Não chora seu viado, acho que aqui ele encaixou uma joelhada, algo assim, sei que o Beto deslizou de volta pro chão. Aí o Juliano cuspiu nele. Acertou na boca, por ali. Já tava cheio de sangue mesmo.

Foi meio rápido isso tudo, as pessoas olhavam sem entender. E parecia que o Beto nunca mais ia levantar daquele poste, parecia que ele tava morto. Mas tava só chorando baixinho, entre uma música e outra deu pra escutar.

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Cara, a verdade é que eu tô vendo um psicólogo, que eu tô me tratando porque eu me tornei uma pessoa muito violenta e a minha mulher tá cheia de reclamação, e tem a minha filha, sabe?, eu preciso tomar jeito. Me disseram que eu preciso pedir desculpa por um monte de merda que eu já fiz. Foi por isso que vim aqui.

Olha, Juliano, isso faz muito tempo, eu nem sei direito se a gente ainda tem como conversar...

Beto, faz um seguinte: deixa eu te convidar pra jantar lá em casa. Pelo menos isso, a gente não precisa voltar a ser amigo.

Isso tudo é muito bizarro, a gente não se vê faz mil anos e tu já chega me pedindo uma parada...

Eu sei que eu tô errado, Beto, mas pensa nisso: essa violência pode mudar, eu posso transformar isso em outra coisa. Mas eu preciso de ajuda, não precisa ser necessariamente a tua, mas eu preciso, então pega meu telefone e pensa nisso que eu tô te falando. Não precisa acontecer, mas eu acho que vai ser bom pra todo mundo, é bom ter fechamento, é bom resolver as coisas. Pensa no que isso pode significar pra ti também.

O pai aparece na porta.

Ô guris, vamos entrar pra comer um milho.