segunda-feira

Nasce João Roberto

João Roberto, como todos que me podem ler, teve a sorte de nascer e sobreviver ao parto. Experiência realmente dolorosa, essa do parto. Expremer-se por um tubo pequeno em direção ao mundo. E depois é só solidão, e vire-se, e amor, a morte, sexo, dinheiro, filhos, carro, família e cadeados, enfim, uma bosta. João Roberto podia muito bem ter ficado dentro de sua mãe comendo do bom e do melhor, no quentinho. Mas, como todos que me podem ler, ele escolheu nascer, talvez por não saber o quê o esperar; curiosidade besta de criança.

Não nos alonguemos, nasceu. Pronto, agora ele vai poder ser o quê quiser. João Roberto é gay. Não é lá uma escolha muito fácil, ser gay. Mas ele é, e gosta. Assistiu "Madame Satã" e achou uma graça a agressividade do filme: "Já deu o cú hoje?".

"Ai, ainda não."

Pega o telefone, liga pro Astolfo.

João Roberto conheceu Astolfo no colégio, quando ainda era um macho. Claro que ainda não tinha experimentado nada disso na terceira série, era macho por convenção. Tornaram-se rapidamente melhores amigos. João Roberto apaixonou-se por Astolfo um pouco mais tarde, na quinta série. Por ser muito cedo, foi um amor meio negaciado, mas ainda assim amor. Com o passar do tempo e seu amadurecimento, ele decidiu contar pro seu amigo.

"Como é que é!?"

Astolfo não parecia muito animado com a idéia. Isso com certeza deixou Beto meio chateado, por muito tempo ele se sentiu abandonado, solitário, realmente infeliz. E, agora, envolto pelo cheiro de pipoca, assistindo um filme sozinho, lembrou do amigo.

"Fala Beto!"

Tofo convenceu Beto de que certos relacionamentos são impossíveis. No processo, aproveitou e convenceu-se.

"Tofo, tô tão sozinho."

Beto, vez que outra, tem recaídas. Eu realmente não entendo porque ele alimenta esse amor platônico.

"Porra, Beto! Eu também! Mas nem te anima. A Leila foi embora hoje, numa despedida meio conturbada. Não sei se ela volta."

"Bobo. Quem ia largar um bofe desse?"

Tofo não gosta muito de ser chamado de bofe, mas sempre fica lisonjeado com esses elogios, mesmo que partam do Beto.

"Ha, valeu Beto! Tu não tava namorando? Quer tomar uma cerveja?"

Tofo prefere encontrar o Beto em lugares públicos. Só por precaução.

"Pode ser. Vamos lá na Lima."

"Certo, tô saindo agora."

"Não, dá um tempo que eu preciso me ajeitar."

"Certo, 15 minutos, nada mais."

Solidão

Continuando a série do casal mais pop desse blog, com vocês, Astolfo. Ele acaba de chegar em casa com aquela cara de bunda, de quem acaba de ser abandonado, e imerge cada vez mais em reflexões...

"Cadê meus cigarros?"

Bom, talvez ele não seja lá tão reflexivo. A verdade é que sente um vazio, como se um vácuo tivesse chupado seus orgãos internos num processo indolor e asséptico. Tofo olha para a rua na procura de, bem... Leila, mas só vê hidrantes, um cão, um cão mijando num hidrante, uma senhora, a calçada, pegadas na calçada, alguns prédios tapando o horizonte, e por aí vaí.

"A cidade deve ter sido evacuada. Leila deve ter levado todo mundo que ela conhecia pra casa e só deixou o cusco e a véia gorda. Maldade, ela nem é tão gorda. E se fosse gorda, qual o problema? Isso só ajuda no efeito "vovó me faz bolinhos".
Acho que a minha vó nunca abandonou meu vô. Os dois deve ter vivido felizes, ela subjugada em casa cuidando das crianças, ele fazendo farra nos puteiros da cidade. Era mais fácil ser homem naquela época, afinal, nem existiam Leilas. Ela não tinha nascido, sua mãe nem tinha queimado sutiãs na praça Argentina ainda. Huhu, se bem que ainda continuam queimando outros combustíveis na praça Argentina."

Tofo nunca queimou nada na praça Argentina. Já a mãe da Leila queimou um sutiã quando Jânio Quadros proíbiu o uso de biquínis. Ela quase foi presa por causa disso, mas era menor. Tofo não sabe nada disso, só especula. Traga o cigarro e volta a pensar em Leila.

"Eu devia ir atrás dela. Não, isso é ridículo. Imagina chegar na frente da casa dela e chamá-la. Leila nunca vai atender, aliás, vai chegar na sacada e me mandar à merda. Aí começa a chover e a ventar, minha voz fica rouca, eu desisto e caio fora. Amar é ridículo, estar apaixonado é ridículo. Será que eu tenho limões? Que mulher insensível, a Leila. Só quer me usar... olha o quê eu tô pensando!! Vou fazer uma caipirinha."

Ele normalmente se alcooliza pra não ter que pensar nessas coisas. É meio que um mal atual, alienar-se pra não ter que pensar. Bom, talvez nem seja um mal tão atual assim, só um mal. A verdade é que Tofo faz uma ótima caipirinha. Nem muito doce, nem muito azeda; não tem tanto álcool a ponto de descer queimando, nem tão pouco a ponto de não se sentir nada. Eleva a produção de uma boa caipirinha a condição de ritual, que ele realiza com calma. Enquanto isso, vai pensando.

"De qualquer forma, nem sei onde ela mora, tudo que eu tenho é o telefone dela. É, não vou telefonar pra ela: demonstra fraqueza. Vamos deixar assim... Será que ela volta? Se importasse tanto, ela não ia me deixar assim. Nos últimos meses - quanto tempo faz mesmo? - ela sempre voltou. Some, e depois volta. Ela só pode querer me deixar maluco. AArgh, Leila, fora da minha cabeça! Um limão, dois limões..."

Tofo chegou no centésimo limão e Leila ainda não tinha desistido.

terça-feira

Astolfo

Não ouse ler esse conto sem antes ter lido o conto "O Casal"; afinal, a ousadia é característica do gênio.

Eu moro em Porto Alegre há bem uns seis meses, metade desse tempo gastei com Astolfo, que conheci no Orkut. É um garoto legal, meio idiota às vezes, mas foda-se, deve ser a idade. Começamos a nos escrever e em um mês ele me mandou uma poesia.

Nossa! Era horrível, pedante; comecei a achar que ele me amava. Sempre deve-se ter um pé atrás com os passionais porque eles acham que só por te amar merecem toda a devoção do mundo.
Ei! Não me venha com essa de Le petit prince, "tu te torna eternamente responsável por aquilo que cativas". O garoto mora num planetinha e é apaixonado por uma rosa dominadora, a história da cúpula de vidro e tal.

Eu sou dominadora, não nego, mas cupúla de vidro à puta que pariu!

Então, antes que ele me cercasse, decidi conversar a sério sobre nossa relação, decidir umas coisinhas. Os homens não são muito propensos a discutir a relação, sei lá, deve ter a ver com o passado patriarcal, mas a gente tinha que enfrentar a realidade. Depois da minha primeira separação o amor se tornou um sentimento meio efêmero, desmistificado, transitório e transferível. Hoje eu gosto é da intensidade, da abrasão, entende? Tipo sentir tudo de uma vez e partir pra próxima. Por isso eu precisava definir as coisas com meu principezinho, dizer pra ele que era pra valer, pelo menos pela duas próximas semanas. Algo meio Vinícios de Moraes, tipo a eternidade entre dois segundos consecutivos.

Utilitarista? Insensível? É foda. Tá o garoto aí, desolado, merdinha do caralho. Só tem uma solução: vou sumir por uns dias, assim ele acostuma.

Leila paga a conta. Tofo olha pras suas unhas, precisa cortá-las. "Fodão-se as unhas, essa filha da puta vai me largar"; é Tofo, a gente cai nessas às vezes. Os dois caminham quietos pela calçada cinzenta acompanhados pelas nuvens, por um cusco magro e por uma senhora gorda numa sacada. O cusco late como se por comida; a senhora tosse e pigarreia; as nuvens tentam descobrir "quem afinal é a cúmulus, quem é a nimbus?"; Tofo finge um cisco no olho; Leila puxa as chaves do carro. Ele queria ter um meteoro, queria fugir pra um outro planeta onde não houvesse Leilas. Ela abafa um "Tchau" nos dentes e se beijam. O gol solta um ronco e liga.
"Carro dos infernos. Mas tudo bem, ela volta... eu acho".

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Sobre o referendo:
http://www.verbeat.com.br/nosnarede/