domingo

O Natal vem vindo

Já era noite de natal. Naquele ano a mesa fora farta, com vários Chesters, Coca-cola e sentimentalismos. Tudo recendia a uma preguiça canina de basset. Os convidados da família ainda estavam na mesa quando me recolhi para meu quarto com o ventre estufado e poucas idéias na cabeça. O sono logo se instalou no meu corpo, e lá fui eu sonhar.
No meu sonho, eu era ainda menor do que na época; devia ter lá uns 6 ou 7 anos. Claro, no sonho esse empecilho era meramente corporal. Pensava como o garoto de 18 que adormecera. Meu eu pequenino esgueirava-se para ver a árvore de natal enquanto toda a casa dormia a noite natalina mais cheia de mosquitos da minha vida. Pus a mãozinha no batente da porta e um olho pra dentro da sala. Uma pequena árvore artificial repousava ao lado da lareira, com seus galhinhos prateados tomados pos bolinhas coloridas. Subitamente uma corda desenrola-se de cima pra baixo dentro da lareira. O garoto de 6 anos sente um frio subir-lhe a espinha. O de 18 pensa: “Que tipo de piada é essa? Há esta altura do capitalismo o Papai-noel bem que podia começar a mandar os presentes via Sedex, Fedex, ou o que for. Mas não, o bom velhinho se expõe ao ridículo de descer por uma chaminé imunda para distribuir presentes a desconhecidos.”
Quem desce pela chaminé, porém, não é bem o esperado. Fardado de vermelho, com um gorro, um ninja desliza pela corda com uma agilidade felina, dá uma cambalhota, uma pirueta, uns chutes no ar, e pára. Me lembra daqueles filmes de sessão da tarde, O Ninja Americano, onde hordas de ninjas coloridos surgem dos mais inusitados lugares pra tentar, em vão, matar o mocinho, ou dançar em volta dele.
O Papai-ninja puxa uma aba do quimono, mete a mão, tira uma caixa vermelha com um lacinho verde e vai enchendo a árvore de presentes. Sua postura é sempre a de estar lutando com a árvore, um metro e vinte mais baixa, como se ela tentasse impedí-lo de colocar os presentes no lugar. Eu, até agora passivo, decido entrar em ação e descobrir, afinal, o quê aconteceu com o bom velhinho original. Saio do meu esconderijo e grito: “Arrá!” – sem saber bem o porquê de proceder assim.
O Papai-ninja logo pula em posição de combate. Da chaminé ressoa o compasso de um tambor de teatro japonês, cada vez mais rápido, até cessar com um gongo. Rapidamente o Papai-ninja puxa umas bolinhas da faixa na cintura e toca no chão. Uma fumaça branca cobre a sala e logo eu não vejo mais nada. Quando a fumaça se dissipa, ele já não está mais ali. De repente, a TV liga: “O natal vem vindo, vem vindo o natal”. Fico imaginando, se a sede da Coca-cola fosse no Japão, como seria nosso fim-de-ano.
-------------------------------------------------------------------------------
Será mesmo?
Há controvérsias:

quinta-feira

Rodolfo curte um Rock

Seis horas da manhã. Seis e dois. Os holofotes ainda estão impressos na retina de Rodolfo, suas luzes piscantes vermelhas, verdes e azuis. Ele segura uma baqueta, a baqueta que foi usada no show de agora pouco. Sente como se pudesse ele mesmo tocar qualquer coisa com ela.

Mas a grande lembrança da noite, o mais marcante mesmo, foi a vocalista. Não raras são as vocalistas mulheres, e Rodolfo curte um toque feminino na aspereza comum aos rockeiros. Ainda mais daquela vocalista, com sua pele lisinha e suas feições infantis contrastando com o som do acorde distorcido da guitarra ao fundo. Rodolfo corre sua mão pela baqueta enquanto pensa nela e em outras mulheres que gostaria de apertar os braços, de morder o pescoço, de beijar profundamente a boca e beliscar os lábios com seus dentes.

Caminhando distraidamente pela Oswaldo Aranha, é abordado:

“Vai um bagulho aí?”

Geraldo aproxima-se de Rodolfo sedento por algum dinheiro pra fechar a noite. Veio da Farrapos até a Oswaldo pra tentar vender o que sobrou. A uma hora dessas, Geraldo beira o desespero. Sonolento, deseja voltar logo pra casa.

“And all I can do is read a book to stay awake
And it rips my life away, but it's a great escape”

Rodolfo subitamente escuta a garota cantar ao pé do seu ouvido. Vitória sorri para o garoto e pede um bagulho para Geraldo, cuja a face se ilumina.

“Cinco reais.”

Vitória paga, envolve o braço de Rodolfo e carrega-o rua acima. Ele ainda está com aquela cara de babaca quando ela simplesmente diz:

“Te vi na platéia e tive que te seguir. Espero que tu não te importe.”

Ele balbucia um “Claro que não, imagina! Eu amo mulheres ousadas.”

“Aba... é... digo... claro que não.”

“Bom, como é teu nome?”

“É... Rodolfo – por um momento achou ter esquecido seu próprio nome.”

“Bem, Rodolfo, esse é meu telefone – e anotou o telefone na baqueta com uma caneta que surgiu sabe-se-lá-donde.”

Vitória largou o braço de Rodolfo e virou numa rua em direção à Independência. Rodolfo, ainda com a cara de babaca, olhou pra baqueta. Havia nela um número de celular e um coraçãozinho sorridente. Sentiu como se na noite passada tivera sonhado uma melodia, mas era só uma paixãozinha.