sábado

O Dilema

Maria Antonieta olha para Gustavo Alberto com rancor. Não pode acreditar que ele mandou-a calar a boca, ela, a mãe de seus filhos, a mulher a quem ele jurou amar por toda a vida.

“Maria Antonieta, você é a mulher a quem amarei por toda a minha vida, a mulher com quem decidi me casar, mas hoje terei que por à prova todo esse amor que me prometeste em frente ao padre. Vou lhe revelar algo de uma imoralidade profunda, o segredo guardado dentro de mim por todo esse tempo decorrido nesta linda casa comprada com o dinheiro de nossos falecidos pais...”

“Ó, fale Gustavo Alberto, não maltrate esse coração que te ama para sempre, afinal dividimos tantas angústias, tantos medos. Principalmente quando meus pais foram assassinados por Roberto Aguilar, inimigo da minha família há gerações. Aquele velho maldito, mesmo sobrevivendo numa cadeira de rodas e à base de respiradores, mesmo assim ele teve a capacidade de dar sua última ordem fazendo com que meus pais morressem antes do seu próprio alvorecer...”

“Maria Antonieta, minha adorada, não me lembre desses momentos tão aflitivos, quando Puppy foi atropelado pelo veículo de fuga daqueles malfeitores e jazeu no asfalto com sua vermelha lingüinha de fora, agonizante e ensangüentado. Ó, mas eu daria milhares de Puppy’s para poupar-me da triste missão de revelar-te o segredo horribilíssimo que carrego junto das minhas aflições, o mais pesado delas, aquele cujas conseqüências temo até a medula dos meus ossos...”

“Não, Gustavo Alberto, temo eu por nosso relacionamento até hoje tão feliz; exceto pelos momentos escuros que sucederam a morte de Puppy no asfalto cinzento da frente da igreja no dia do nosso casamento, o mesmíssimo dia em que o sangue de meus ascendentes foi derramado sobre o mesmíssimo asfalto onde foi sepultado o último suspiro de nosso cãozinho tão companheiro que numa última investida pulou na frente do Santana negro de nosso algozes...

“Ó, Maria Antonieta, é exatamente sobre isso que devo confessar-te: eu atirei Puppy contra o pára-brisa do Santana!” (TAM-NAM) “Não agüentava mais aquele puddle de merda!”

“Ora, seu viadinho filho-da-puta!”

domingo

Eva

Eva, ironicamente, foi o nome da minha primeira mulher. Amamo-nos sobre seu leito matrimonial ao som de um cabeceante ventilador que negava tudo. Ela traía seu marido como quem cozinhava bolinhos; eu, por minha vez, me lambuzava. Muitas vezes mais a comi naquela cama, depois no tapete, então migramos para a sala, cozinha, um tour. No fim, cansamo-nos um da cara do outro e eu fugi numa noite estrelada sem qualquer lágrima no rosto porque não queria ver Eva fritar-me na cama com outro.
Depois disso, muitas vezes procurei no rosto de outras mulheres um que não fosse o dela, mas todas elas eram feitas de espelhos que refletiam minhas próprias memórias. Eva tinha o cheiro das outras e elas reciprocamente tinham o dela; Eva tinha o bafo das outras e elas reciprocamente e assim por diante até que vomitei numa delas para desfigurar-lhe o rosto, para inundá-la das minhas impurezas mais íntimas pois eu tinha a certeza de que esse não seria um cheiro parecido com o de Eva. Mas era.
Concluí que Eva fora para mim algo como uma marca, um cancro que coçaria eternamente nas minhas costas num lugar onde eu nunca poderia alcançar e que só curaria quando eu arrancasse aquela carne putrefata que a marca havia se tornado. Mas não haviam facas feitas dessa matéria de que são feitos os sentimentos então decidi que só algo cortante como um novo, insano amor seria capaz de expurgar de mim essa ranço. Como me apaixonaria assim, deliberadamente?
Não havia uma grande resposta para essa que talvez seja uma das grandes perguntas perguntadas por aí por pessoas assim tão desatinadas. Então, vaguei por uma cidade meio fedorenta até encontrar no meio de uma pequena viela uma preta gata desconfiada de grandes olhos de vidro por quem fortuitamente me apaixonei instantaneamente. Ela não correu, nem mesmo pestanejou enquanto eu me aproximava determinado a desvirginá-la fosse qual fosse o tamanho de seu sexo. Toquei-a com o sangue borbulhando só para descobrir a face mais cruel dos meus desejos íntimos; a preta gata não passava de um animal empalhado abandonado no meio da rua. Qual sorte de demente empalharia um animal tão ordinário quanto uma preta gata de brilhantes olhos de vidro tão lascívos, tão hipnotizadores?
Uma garota que se mantinha incógnita na densa escuridão da viela se dirigiu à mim: "Você, seu animal imundo, seu cão abandonado, você certamente apaixonou-se por Eva e agora procura na face de outras mulheres uma que não vá lhe parecer a primeira. Eu sei disso porque todos vocês, bichos do esgoto, procuram nessa viela o reflexo dos olhos da minha preta gata empalhada onde na verdade só encontram sua própria imagem. Essa libertina sabe muito bem como lhes agradar pois ela carrega nos olhos o brilho de que é feito esse mesmo brilho que ilumina os olhos dessa gata na escuridão mais densa que pude encontrar. Eu realmente espero que você apodreça e morra na frente de um espelho de banheiro batendo uma punheta infinita que leve teus ovos a secarem, assim como à tua alma."
Cai num abismo feito de paredes de vidro e enquanto caia tentei fazer a melhor careta de susto possível. Essa insanidade deve ter durado algumas horas, mas, no fim, eu já sabia o que devia fazer. Acordei na frente da casa de Eva, mas ela não deve ter gostado muito no momento em que invadi sua cozinha enquanto ela fritava bolinhos. Seu sangue esguichou alto quando arranquei-lhe os olhos com uma daquelas facas de serrinha e aqueles gritos ainda ecoam por aí. Eva chorava mesmo sem ter olhos, eu não sei como. Engoli-os e só então pude dormir.

sexta-feira

Florianópolis

O vôo São Paulo-Porto Alegre não faz escalas em Florianópolis, passa tão alto quanto se pode passar. Lá de cima, um garoto olha para baixo impressionado com a pequena linha que liga a ilha ao continente - diria que do outro lado do mar existe um universo paralelo, tão tênue e frágil ela lhe parece.
O pequeno Chico abre seus olhões endurecidos pela fuligem de alguma outra cidade e, diante de um recente viaduto, pergunta-se onde vão parar os mendigos recolhidos na Beiramar. Não consegue imaginar uma capital sem pobreza, uma faculdade sem um estacionamento grande ou um apartamento limpo e livre de baratas.
Ana toma banho quando nota a invasão de milhares de mosquitos pela basculante do banheiro. De uma hora pra outra, já não consegue mais respirar afogada num mar de insetos sanguessugas. Milhares de olhos minúsculos perscrutam seu corpo nu em busca da veia definitiva que lhes alimentará pela vida toda. Morre afogada no banheiro.
Na beira da praia, Bruno vê o mar recuar pra longe e logo lhe vêm a cabeça imagens de um grande Tsunami que devastou o Oriente há bem um ano. Mas é tudo uma questão de perpectiva, pois não é o mar quem recua, e sim a areia quem avança grão sobre grão, num multiplicar incessante, pululante, fervente. Tão logo quanto possa perceber, ele se vê afogado num monte ainda quente de areia.
Olhos endurecidos e vozes caladas na treva asfixiante.
Cores semi-apagadas.
O garoto voa para muito longe na noite carente de estrelas.