terça-feira

O Jardineiro e a Mão do Diabo

Isso, definitivamente, é uma 45. Uma pistola de fabricação israelita, de forma que eu nem quero imaginar o tipo de munição que esse cara usa. Não quero imaginar também que essa merda atravessou o Mediterrâneo e o Atlântico pra vir encostar seu bocal na minha têmpora.

“Cadê o pó?”

E eu lá sei onde anda o pó!?

“Cadê o pó, filho-da-puta, CADÊ O PÓ!?”

Ele me chuta pra longe, continua com a arma apontada na minha direção. Seus olhos estão injetados, vermelhos, sua respiração ofegante. Sua feito um porco, fede como um, o cabelo encaracolado completamente desgrenhado, o cigarro na boca, a camisa de flor aberta expondo toda a flora escura do seu peito. Não existe qualquer glamour em ser um assassino. Ele se aproxima e chuta novamente, na cara, eu cuspo sangue e um dente. Minha boca lateja.

“Se tu me matar, nunca vai saber!”

“Pois deixa eu te dizer uma coisa: morrer é a última coisa que pode te acontecer.”

Ouço o estampido, o baque surdo da mão do Diabo. Pólvora, faíscas, fumaça. Sangue, meus dedos se desfazem em sangue. Uma rosa cálida forma-se no chão em seu lugar, olho pra ela num último instante antes da dor, no último segundo de surrealidade antes das sinapses devastadoras.

“AAAH! CARALHO!”

“Malditos policiais, sempre dando uma de durões. Agora, você ainda tem três membros, eu ainda tenho três horas. Temos um acordo?”

“EU NÃO SEI, pelamordedeus, não sei. O Alemão e o Careca levaram tudo hoje... levaram de volta pro morro, eu juro.”

Ele pisa na ferida aberta.

“Jura é, mesmo?”

“JURO, juro, ju...”

Então estoura pela última vez o baque surdo, a mão do Diabo.

segunda-feira

Era uma vez...

..., assim, uma fada de vidro. Bem, não toda de vidro, só as asas; também não era UMA fada de vidro, era A fada de vidro. Sacaram?

Tá, supimpa, a fada das asas de vidro. Acontece que os amiguinhos que entenderem de física vão concordar comigo: uma fada com asas de vidro simplesmente não voa, não pode, não com essas asas de fada. Esse, enfim, deve ser o dilema da história. Não, não é.

Uma vez bem polidas e sob um ângulo que varia com o horário do dia, as asas da pobre fadinha possuíam a capacidade de incendiar mato seco. Isso tornava-a um perigo iminente pros seus coleguinhas habitantes da floresta, logo, na intenção de prevenir acidentes, a pobre fadinha vivia com suas asinhas sujinhas. Não é horrível? Uma fada que não brilha? Parafraseando um desses poetas comunistas*: fada é pra brilhar!

Esse era o real motivo pelo qual a fada não voava, pois, na verdade, é bem sabido na comunidade da Floresta do Mato Seco que as fadas só voam por causa do efeito foto-elétrico. A luz levanta-as do chão, não aquele pózinho... qual mesmo? O da Sininho? Tá, supimpa, ela não voava. Não é algo que vá causar grande comoção. É, é sim.

Afinal, fada é pra voar! E a porra da fadinha das asinhas de vidro não tinha qualquer outra habilidade. Ela não abençoava recém-nascidos, não dava pó para criancinhas, não pagava por dentes, nem nenhuma dessas contribuições das fadas para o avanço do mundo capitalista ocidental. O que aconteceu então foi extraordinário: a fadinha quebrou suas asas, caiu de uma goiabeira e quebrou suas asinhas. Não é maluco?

Naquele dia, quando levantou-se após a queda, juntou os cacos e deles fez um espelho. De uma hora pra outra, os animais da comunidade podiam ver-se deformados na limpidez dos cacos colados. A fadinha, por sua vez, cobrou um entrada dos bichinho e ficou tudo na boa.


*Maiakovski, ou algo semelhante.

quarta-feira

Porfírio

Dizia-se, até pouco tempo atrás, que Deus anotava todos os pecados da gente num enorme livro que ele conferia no dia de nossa morte. Balela! O serviço foi terceirizado durante o episódio com Caim naquele monte... como era o nome? Bom, tanto faz, importante é que depois disso o Santíssimo cansou a munheca e decidiu fazer um departamento de anjos para anotar em livros separados as peripécias de cada homem. Então veio a modernização, os fichários, os computadores, a burocracia e, finalmente, a propina.

Foi numa dessas que Porfírio recebeu a luz. Andava rente ao muro do cemitério naquela noite nublada quando um facho de luz despencou do céu bem na sua frente. Ajoelhou de pronto. Um anjo pousou bem ali com um capote sobre os ombros e um chapéu de feltro cobrindo o rosto.

“Puta que pariu, Deus seja louvado!”

“Cala a boca! Não blasfema que ele acorda!”

“Ãhn...”

“Negócio é seguinte: eu quero três brigadeiros, duas cocadas, um pacote de Free e uma caixa de Skol lata. Se tu trouxer tudo direitinho, apago todos teus pecados nos arquivos do Céu, vão poder até te beatificar!”

“Como é que...”

“Rápido, animal!”

Porfírio correu o quanto pode até o supermercado e comprou tudo direitinho. Voltou com duas sacolas, trouxe até umas bolachas. Quando entregou tudo pro anjo, ele falou novamente:

“Atravessa a rua, rápido!”

Sem duvidar, Porfírio virou pra estrada e tropeçou no meio fio. Caiu com a garganta numa garrafa quebrada.

“Te vejo em dez minutos, camarada.”