segunda-feira

Reencontro

Não é que Jair quisesse, mas sua presença sempre chamava a atenção. Dessa vez não era diferente, todo lanhado, esculachado do jeito que tava: perdera dois dentes, quebrara um dedo, os cotovelos em carne viva, a camiseta rasgada manchada de sangue, um pesadelo. Foi então que, perambulando como tava pela rua, viu Tânia.

A Tânia, nem precisa dizer, tava meio bêbada como sempre. Sentada num boteco bebendo cerveja, já foi pior. Ela avistou Jair naquele estado e, antes mesmo de se preocupar, pensou: “não pode!”, porque Jair nem era um cara que vivesse perambulando feito um doido por aí. Ironicamente, bem na hora, ele parou exatamente na frente do barzinho, cuspiu o terceiro dente, e fez menção de continuar andando. Tânia nem perdeu muito tempo:

“Ó Jair!”

Jair olhou pra ela e esqueceu que não devia sorrir. Tânia levantou devagar, tava com a bexiga meio cheia, e já foi perguntando:

“Que aconteceu contigo, porra!?”

“A gente vive se machucando, não é, Tânia? Engraçado te achar aqui, nem tava te procurando hoje.”

“Vai voltar com essa conversa, Jair?”

“Tá, me vê um cigarro.”

Tânia tirou um cigarro do bolso e deu pro Jair. Ele acendeu, tragou, e disse assim, com o cigarro na mão:

“Vamos lá pra casa e pára com essa bobagem de amante, vai.”

“Jair, já faz dois anos, tu não consegue esquecer porra nenhuma?”

“Esqueci, pronto, esqueci a porra da amante. Vamos pra casa.”

“Eu tenho uma casa, Jair.”

“Pronto, agora tem duas.”

“Tô cansada desse papinho mole, quero mais é que tu te foda!”

Virou as costas e voltou pro bar. Jair manteve a presença de espírito e gritou sarcástico:

“Tu não cicatriza mesmo, hein, Tânia!?”

domingo

Um lugar comum

Subia para o sexto andar quando ela entrou no terceiro. Nada demais, mesmo assim me chamou a atenção. O elevador é assim, pode entrar cachorro que chama a atenção, pode entrar mosquito. Não tem nada pra fazer, a não ser olhar pro mosquito. Ou pro mostrador enquanto os andares vão passando. Bom, pelo menos era uma mulher.

Eu, particularmente, não gosto de sair conversando por aí. Todo mundo tenta ser gentil quando na verdade a maioria nem é. Depois, vem aquele papinho mole de tempo, dor nas costas, estresse, o diabo! As pessoas ficam chatas quando entram no elevador, ficam mesmo.

Por outro lado, se ninguém conversa, fica aquele climinha. E daí, tu não vai ficar olhando pra cara do outro sem falar nada, também não vai assobiar. O elevador segue zunindo aquele barulhinho dos andares passando e os dois idiotas escutando pacientemente, rezando pra ninguém abrir a boca.

Não, não me acho chato, chato é o elevador, essa confrontação forçada com pessoas que tu não faz a mínima questão de conhecer.

Mas ela fez questão e foi supimpa. De repente me perguntou se eu não achava que os carros pareciam suar de noite, no inverno. Eu ri, ia fazer o quê? Ela riu também, mas eu acho que não era uma piada. Eu disse isso pra ela. Falou que odiava chegar perto do carro... é porque ela estacionava fora do edifício, não tinha garagem, ela odiava aquela água toda encima do carro dela pela manhã. Aí perguntou se eu usava a minha garagem. Achei ótimo. Respondi que guardava minha bicicleta, podia alugar pra ela. Daí veio a revelação: ela tinha lido, sim, meu anúncio na portaria e supôs – olha só – supôs que era eu o cara. Guria maluca. Mal posso esperar pra cobrar o aluguel, a gente vai poder conversar de novo.

Deuses

Era noite. Indubitavelmente, inacreditavelmente, era noite. Caíra como um pára-quedista sem sobressalente na hora da falha, estabacou-se no chão do deserto, a Noite, e, assim, esmoreceu o calor do dia sufocante nas dunas. Sem aviso, depois do fim da esperança, margeando o surreal, a Lua rodeada de Estrelas.

O pequeno Samir mal podia acreditar na sua sorte, na sorte da criatura amaldiçoada que encontra a redenção. Fora, de fato, condenado a dormir com os escorpiões por vangloriar-se, por creditar-se a divindade. Não era mentira, o garoto era um deus, um dos novinhos, mas ainda assim um deus. O Sol, porém, era muito maior e desidratara-o durante o dia, que, creio eu, fora o dia mais quente do milênio. É bem sabido que o astro é um tanto quanto invejoso – maldoso – no que tange deuses novatos.

Mas o deus-garoto agora tinha outro problema: os escorpiões. Do meio das dunas, das profundezas da areia, eles saiam à noite para escavar as carcaças abandonadas pelas criaturas do dia. Eram escorpiões enormes que não se furtariam em perfurar o corpo do pequeno Samir com suas caudas; comeriam sua farta carne com gosto. Viu-se novamente desesperançado após a esperança.

Céus, que inferno! Não o queriam por deus, não o queriam por carne, queriam-no, sim, morto por escorpiões e abandonado no deserto. Já não era um segredo de olhos calados, já havia sido verbalizado e ah!, doía-lhe na alma a certeza da ingratidão, da inveja de seu brilho. Samir-dos-olhos-brilhantes, ele era o Horizonte, o Além, o Desconhecido, e por isso, um condenado.

--------------------

continuação? será?

O Momento e o Eterno

Nunca devemos ignorar o efeito de uma pergunta certa feita na hora certa. Joana, pelo menos, não deveria ignorar o efeito contrário, principalmente pelo aspecto broxante do tópico: casamento. Com dois meses de namoro, casamento é paranóia, conspiração, absurdo, é o assunto proibido.

"Não, não rola." – responde Dado.

"Não é isso, não. Perguntei se tu pensa em casar, sabe, algum dia?"

"Meu, pára de pensar em bobagem..."

"Não é bobagem, é sério. Sabe, constituir família, filhos, cachorro, vizinhos, cadeados, igreja, carro, mensalidades, jantares beneficentes..."

"Não."

"Quê? Não o quê?"

"Não, caralho! Não penso em casar, ficar chato, não penso em nada disso. E não enche o saco."

Chato, diz Dado, talvez no sentido "plano" da palavra. Dado não pensa em ficar plano, na planeza da cama de casal arrumada, sem vincos, na placidez mentirosa da cama de casal arrumada, baluarte da relação estável, dita eterna. Não pensa, mas deveria. Isso talvez lhe desse motivos pra ter a mesma opinião. No entanto, abstém-se pela segurança radical do não-saber.