segunda-feira

Astolfo

“Sabe, antes de te conhecer, eu achava que era muito fácil se apaixonar pela figura de alguém deitado numa cama dormindo. Deve ser essa coisa de vigília e tal, mas, meu deus, como tu ronca!”

Eu muitas vezes me pergunto qual será esse deus a quem Astolfo vive se referindo. Ele sempre me pareceu tão ateu, exceto por esse desvio de conduta, de fala. Tudo que existe nele parece vir de uma contradição ou um traço de inconformidade: esse nome rículo-antigo confrontado com a figura do garoto de 21 anos (creio eu), os sentimentos que ele declara-negacia com tanta facilidade, a dificuldade em manter uma linha de diálogo . Por algum tempo tive medo, mas cheguei à conclusão de que fui em quem procurou essa instabilidade.

“Benzinho, é por isso que eu te digo: tuas melhores declarações vêm mais de baixo.” – ele sorri daquele jeito.

“Tá com fome?”

“Eu começo a me preocupar com a tua alimentação, com essas porcarias que tu come todo dia.”

“Já sei, vamos no árabe lá na esquina.”

“Você paga, não tenho dinheiro agora.”

Parece um pacto velado: nossas conversas costumam evitar os assuntos constrangedores ou discordantes. Eu acho que a não-agressão mútua acaba por machucar da mesma forma. O mais engraçado é que isso não me incomoda, parece lógico nos afastarmos quanto mais nos conhecemos. Acho nobre enfrentar a fatalidade com um espírito sereno.


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Pro Pedro, que tava de aniversário ontem. Parabéns!

Recomecei a escrever o livro, ainda falta passar o primeiro episódio pro computador. Esse é o segundo.

Romance

Eu sinto, cada vez mais, que só sei fazer as velhas escolhas. Voltei pra ela com o coração apertado, com o mesmo sorriso encabulado nos lábios. Ela não sai desse lugar, do nosso apartamento. Suspira e chora o tempo todo, mas quem não a conhece não pode ouvir ou ver suas lágrimas.

"Amor, cansei dos vícios, de acelerar no tempo torturando as horas, cansei da saudade negaciada, do meu espírito sazonal."

"Tu não sabes, ou pareces não saber, da minha tristeza, do abandono e da inevitabilidade das tuas palavras: não te cansas."

"Parece estar congelada no teu coração a lembrança daquele momento em que te virei as costas e fugi pro mundo que teimava em desfilar à frente dos meus olhos. Ignoras as decepções e a tortura das noites em que eu só podia ouvir o barulho da nossa porta se abrindo."

"Foste tu quem a fechou."

"Não esperas, não deverias ao menos, que eu pudesse sobrepujar o canto das ruas, o fascínio da noite, a volúpia da degradação."

"És determinado, eu admito, mas de forma alguma poderei ser aquela que regozijava ao te ver entrar com um sorriso encabulado na fronte desalmada."

"Admiro a tua força, hoje e ontem. Peço, porém, que não me submetas novamente à saudade."

"Saudade o caralho!"

Ó, como são duras as mulheres magoadas!