domingo

Um Breve ensaio sobre relações

Sabe esses espelhos, não, esses vidros espelhados que a gente se vê de um lado, mas consegue ver através do outro? Peço desculpas desde já porque eu não sou um grande filósofo. Tenho lá umas teorias, talvez não sejam tão originais, vá lá, os espelhos: comecei a achar que as pessoas são assim, quando você está com elas acaba recebendo de volta essa imagem meio difusa, supondo que o vidro não seja tão bom. É meio paranóico pensar que todas as pessoas, o jeito como tu te relaciona com elas, isso seria simplesmente um reflexo de ti mesmo. Todavia, não me parece absurdo.

Aí eu comecei a imaginar que de repente, se ninguém tiver luz própria, como um encadeamento de reflexos, essa luz original acabaria por se extinguir e num dado momento tudo seria escuridão. Meio triste, apocalíptico, então decidi expandir a teoria e acreditar numa luz interior, a mesma que distorce a imagem original. Isso tudo é meio hippie, pra falar a verdade nem gosto muito dessa teoria, mas como viajei por semanas nessa porra, acabei contando tudo pro Varela.

Ele é um gordo meio careca, meio mongol – da Mongólia, sabe? Foi o único descendente de mongóis que eu conheci. Não sei como pode, achei que esse país nem existisse mais. Virou pra mim, assim mesmo, e disse: cara, vamos comprar um charuto pro teu aniversário. Foi a melhor festa que eu já tive.

Vermelho

Naquele dia, sentei inocentemente do lado de minha vó. Ela sempre foi uma senhora muito católica, mesmo no tempo em que nem era uma senhora. Virou pra mim, depois de um ano da minha mudança, e perguntou:

"Tem ido na igreja, meu filho?"

Estávamos sentados na cama. Olhei pra ela sem entender direito, só então caí em mim. Na minha cabeça, ao separar-me da minha família, essas obrigações haviam cessado. Eu lá ia acordar num domingo pela manhã pra ir à igreja de ressaca? Tenha dó! Hesitei como quem mente justamente pra mentir, ou pelo menos amenizar:

"Sabe como é, né, vó? Não tenho tido lá muito tempo, as aulas e tal. Sábado eu fico fazendo trabalho, acaba que não sobra tempo..."

"Meu filho, tu precisa ir na igreja. Fica aqui no quarto pensando, depois eu volto pra conversar sobre isso."

Pronto, me deixou de castigo. A matriarca sabia comandar as coisas, nem passou pela minha cabeça desobedecer. Estiquei minhas pernas sobre a cama e atentei pra passagem do tempo. Já sentiu? Essa vibração no ar que só quem pára e respira fundo consegue sentir? São milhares de bolhinhas que estoram, aleatoriamente, continuamente, nos pelinhos do nariz e nunca acabam. Então uma caixa se abre em algum lugar da cabeça e é só tempo, um caos ordenado seguindo o compasso irregular do coração.

"Então, meu filho, já foi na igreja?"

E que porra era essa agora?

"Vó, não foi tu mesma que me mandou ficar aqui, no quarto?"

"Sim, e eu também disse que tu precisava ir na igreja."

Apesar de fisicamente impossível, ela tinha dito isso mesmo. Fechou a porta atrás de si, me trancando com um novo problema. Eu devia ficar no quarto por não ter ido na igreja e precisava ir pelo mesmo motivo. Não havia ressalva, ou exceção, não podia ser "ou uma coisa, ou outra". Tinha de ser as duas. Na minha concepção, uma penitência impraticável. Por isso mesmo, a minha penitência.

Acontece que o quarto já nem parecia mais um quarto desses de casa, a cama era redonda, as paredes forradas de veludo vermelho. Tudo forrado de veludo vermelho. O diabo, vestindo um Armani e fumando um cubano, entrou pela parede me oferecendo um cigarro. Acendeu dizendo:

"Sabe, Chico, essa coisa de Deus, o maniqueísmo, o aborto, as drogas, os ídolos do rock, a boemia, a Boêmia, os nazistas, ..."

Acendeu de novo o charuto e olhou pra mim.

"Você parou nos nazistas."

"Então: os nazistas, os comunistas, os anarquistas, as grandes corporações, sabe? Parece que todo mundo tem a verdade na palma da mão. Amiguinho, a Verdade é uma prostituta e os progamas rolam aqui nesse quarto. Ela usa espartilhos sem calcinha, saltos finos de vinil, sobretudo de couro e um chapéu panamá. Não entende nada de estética, ou moda. Tu devia foder a Verdade de vez em quando. Ela cobra pouco, e pros chegados, nem isso."

O diabo é assim, diz coisas de mal gosto só pelo prazer. Vovó entrou meio assustada.

"Já foi?"

"Senta aqui, vó, que eu te ensino a rezar."

O diabo tragou inadvertidamente o charuto, e riu em meio a tosse.