terça-feira

Contos de Cavalaria

E tudo terminou assim: a duquesa morreu e Cornélia entrou em Ferrara alegrando toda a gente com o esplendor de sua beleza. Os lutos transformaram-se em galas; as criadas ficaram ricas; Sulpícia casou-se com Fábio; Dom Antônio e Dom João ficaram contentíssimos por terem servido o duque em alguma coisa e este ofereceu-lhes suas primas como esposas, com dotes riquíssimos. (1)

O primeiro punho estala contra a mação do meu rosto criando vários coágulos que juntos formarão um ferimento maior. O segundo afunda no meu nariz deslocando e rompendo a cartilagem, estourando veias e disparando um formigamento através dos nervos da minha face que só pára no meio do cérebro. Há ainda um terceiro que se choca contra o maxilar, mas desse já tenho pouco a dizer, pois me concerne mais o fato de que entre lobos e rugosidades, veias e vielas encerradas no meio do meu crânio, entre eles, dizia, instalou-se um câncer contraído da tua boca. Por mais punhos e pés, botas e soqueiras, tacos e bastões, não importa a quantidade ou a qualidade de ferramentas empregadas, enquanto tentarem me extirpar esse câncer não conseguirão.

É de sua natureza que se alastre e suma sozinho, como é da minha desejá-lo sempre maior a engolir pensamentos e calejar sentidos. Não quero perder a chance de sofrê-lo, não quero ter-me sóbrio à mesa engarfando comida e o tempo. Quero ruminar segundos de espera onde um pequeno choque me corre as costas consumindo um rastilho que desemboca no fundo de um sofá. Preciso de uma certa violência para me justificar acordado e manter-me ciente desse estado. Essa é a propriedade da minha doença que muito se sofre para poder contrair.

Não posso negar, senhora, que vos conheço, pois vossa voz e vosso rosto não me permitem negá-lo. Também não quero negar o muito que vos devo nem o grande valor de vossos pais nem vossa incomparável honestidade e sensatez, [...] Confesso, formosa Leocádia, que vos quis bem, mas também confesso que assinei aquele papel mais para realizar vosso desejo que propriamente o meu, pois muitos dias antes de assiná-lo já entregara minha vontade e minh'alma a uma jovem de minha cidade, chamada Teodósia, [...] (2)

"... eu sei que não posso te forçar a se importar e me dói saber que, a rigor, não te faz a mínima diferença."

"Tu te engana. Eu me importo, sim. Só não posso ir contra a minha vontade..."

"Ah, por favor, que vontade é essa!? Não te parece paradoxal que tu diga te importar e ao mesmo tempo termine comigo!?"

"Então tu fica com a tua auto-piedade que eu fico com a minha."

...

"Desculpa."

"Qual o teu problema, hein?"

"Sinto a tua falta."

"Eu queria sentir a tua falta, mas não sinto. Na verdade, só queria mesmo era sentir isso por alguém."

"E por quê não eu?"

"Nem faço idéia. Talvez tenha sido tu em algum momento, não lembro. Agora, infelizmente - pra nós dois -, já não é mais."

Ele torce os lábios e desvia do rosto dela cujo nariz percorre uma pequena curva no ar e aponta os olhos para um horizonte invisível.

" 'Preciso ficar sozinha' é uma das coisas mais horríveis que se pode dizer pra uma pessoa apaixonada, porque cria de imediato uma disparidade muito grande."

"Preciso ir."

"Vamos nos ver de novo?"

"Acho que não vai ser muito bom nem pra mim, nem pra ti. Adeus."

"Até mais."

- Ó côrte, que dilatas as esperanças dos atrevidos e que reduzes as dos talentosos tímidos, que alimentas fartamente os truões desavergonhados e matas de fome os que são discretos e briosos!
Assim falou e partiu para Flandres, onde acabou de eternizar, pelas armas, em companhia de seu bom amigo, o Capitão Valdívia, a vida que começara a eternizar pelas letras, deixando, ao morrer, fama de prudente e valentíssimo soldado. (3)

Toda essa coisa é como correr com uma tesoura na mão, sabe? Quer dizer, por mais que você chegue vivo no final, porra, quem precisa tão urgentemente de uma tesoura? Eu nem ao menos sei costurar. Se fossem chaves do carro, o controle do alarme que tá tocando, um copo d'água, pô, um kit paramédico, vai dizer? Um kit é importante pra caralho, tem gaze, tem uma pá-de-coisa, e se tu cair encima dele ainda rola de nem se machucar, não corre tanto perigo, vale muito mais a pena, entendeu? Então, esse lance que cê disse, eu nem gosto muito de falar dessas coisas, esse lance é correr com a tesoura. Tu precisa se ligar e começar a correr só com o kit paramédico, ele é importante, ele não vai te machucar.

E pra fazer roupa?

Corta com estilete, que dá pra recolher.

Isso não faz sentido.

Tu que não prestou atenção no exemplo.






(1)A senhora Cornélia
(2)As duas donzelas
(3)O licenciado Vidriera
Todos retirados da edição de 1970 de
Novelas Exemplares, de Miguel de Cervantes Saavedra, da coleção Os Imortais da Literatura Universal.


quarta-feira

The redlight indicates doors are secured

A duna é como o mar... mas que merda é essa? Cravo os dedos no paredão de areia à procura de algum apoio, e vou me agarrando precariamente nesse algo que se desmancha na minha mão sem poder ver através da escuridão e dos meus seis graus de miopia. Cadê meus óculos, porra!? Subir parece tanto com descer, eu não tenho bem certeza, se é que... há algo mais escuro pra cima e... se é que...

Minhas pernas ficam pesadas como duas tias gordas que eu insisto em puxar e arrastar a revelia do quanto meu pulmão possa curvar-se e queimar. E não tem problema, nada pode me incomodar agora que eu lembrei: amanhã é sábado, não trabalho, e se trabalhasse não poderia ir porque não há saída, sabe, é tudo essa massa, tudo esse... como um grande vulto que se percebe mas não se reconhece. Recosto-me e deslizo lentamente pra baixo. Grandes manchas de luz poluem o céu.

Não Gustavo, não adianta buscar sem saber o quê, e sem caminho você vai continuar deslizando pra baixo e a sua auto-piedade não vai virar um foguete e te levar pra cima porque você sabe que tem a gravidade e talvez nem seja isso mas auto-piedade não, não vai adiantar beber e cravar teus olhos injetados no rosto apagado de alguém quando teus olhos, meu bem, teus olhos mal enxergam. E já era hora de você notar isso, mas agora é noite e você vai ficando velho e macerado e cada vez menos sóbrio a ponto de qualquer dia não poder mais encontrar uma saída e aí a saída vai ser continuar na mesma, por mais que de uma hora pra outra isso deixe de fazer qualquer sentido.

"Meu maior medo é esquecer o que me levou a trabalhar. Depois de um tempo teus planos desaparecem porque tu talvez tenha te tornado outra pessoa e, tudo bem, de uma forma ou de outra tu sempre acaba te tornando outra pessoa, mas há algo do que eu sou hoje nos meus sonhos e parece que perdê-los é me perder, não?"

Gustavo olha pra mesa. O bar tá cheio.

"De onde tu tirou isso?" - a queridinha.

"Bem, sei lá. Só tenho a impressão de que mal começamos e já tá tudo errado."

"É risco de se começar qualquer coisa. E que importam teus sonhos? Eles são só um pedaço da noite, e a noite só um pedaço do dia. Pare de pensar sobre isso."

E por mais que não fizesse sentido, ele acabou parando mesmo.

domingo

Eterno retorno

Há ruas demais e por todo lado gente o bastante, e há tantas escolhas no cardápio que de tanto escolher Leila escolhe o mesmo, sempre. Porque saber o gosto das coisas é seguro e porque segurança dá uma sensação... confortável, vocês devem saber. Mas talvez lá pro fundo do cardápio, escrito numa letra pequena, ou em mágicos arabescos que precisam ser decifrados em um processo moroso e desafiador, esteja o prato no qual todos os sabores sejam contemplados e cada garfada esconda um novo e delicioso segredo. É provável que o maître engasgue ao receber do garçom a notícia do pedido, e num pequeno espaço de tempo apareça com desculpas, sabe como é, ninguém pede isso, não temos todos os ingredientes nesse momento, eu lhe sugeriria o prato do dia, está maravilhoso. E a partir daí ela já sabe que é exatamente esse prato que procurava, e como vocês não podem fazer se está no cardápio, eu quero meu prato agora ou vou falar mal desse bolicho pra todo mundo, pra depois de uma longa discussão ser expulsa do lugar.

Não, ninguém pode saber quando chegou ao prato certo, logo o jeito é continuar procurando.

Agora, agorinha, o que Leila busca repicando o dedo sobre o cardápio só pode ser me irritar, porque já escolheu faz muito tempo, e sabe o que eu sempre como ou pelo menos tem uma idéia do meu gosto. Apoio um cotovelo na mesa e espero olhando pra fora, pela vidraça, onde senhoras empurram carrinhos de bebê, catadores empurram seus carrinhos de papelão, e um mendigo escarra na sarjeta. A fome arrefece, uma acidez invade meu estômago e eu penso logo num copo de leite com algumas bolachas. Leila levanta sua unha limpa para chamar o garçom, que demora mas vem, meio afoito, puxa um caderninho e olha ansioso.

“Duas cocas, por favor.” – ela diz.

“Já pede a comida.” – reclamo.

“Não escolhi ainda.” – balança a cabeça.

Porra, agora ele já foi.

“Leila, meu bem, posso ver o cardápio?”

“Que tal comer em um outro lugar? Agora senti vontade de comer um lanche.”

“Conheço um lugar...”

“Garçom! Cancela a coca.”

“... que fica aqui perto. Podemos comer um xis lá.”

“Prefiro um pastel.”

“Então escolha de uma vez, que tô ficando com fome.”

quinta-feira

O Encontro

Duas semanas separam Astolfo do último encontro - conseqüentemente voltou a fumar, e do vermelho (sintam a gravidade). Desce a rua trotando, pisoteando insetos que não vê, estalando os dedos. Acalme-se, não adianta ficar tão nervoso, vai ser legal, descanse as mãos, descanse os pés, não precisa ficar desse jeito. Afinal, vocês já fizeram isso milhares de vezes, já se viram milhares de vezes, e não é a primeira vez que Leila some. Diminua o passo, veja o restaurante, as vitrines, as pessoas, contenha-se, ninguém tem nada a ver com isso.

E ele diminui o passo e o coração, diminui bem apertado; fecha os olhos, comprime-os, pra não desistir. Ao entrar, atinge a porta com o ombro, solta um “merda”. Pronto, todos estão olhando, inclusive Leila. Pelo menos, ela está aqui, mas está diferente. Não usa batom ou tinta nos dedos, não usa óculos escuros, não fuma. Seria difícil reconhecer se não fosse tão natural, se não carregasse algo na expressão tão dela, um algo que não conseguiria esconder nem sob uma máscara de solda. Tofo senta-se.

“Olá, benzinho.” – ela diz naturalmente.

“Por que não tu responde as minhas mensagens? Onde...”

“Tu tá com uma aparência deplorável” – vira-se. “Um cinzeiro, por favor!”

“Eu sinto como se tivesse perdido essas duas últimas semanas girando em torno de algo fútil, porque você não está nem aí, mal sente minha falta. E mesmo assim, não pude deixar de vir aqui. O que tu quer Leila? O que tu tá fazendo comigo? Quero dizer, tu podia sair procurando outra pessoa, afinal, eu vou sobreviver, isso vai passar, então parece que é um capricho, sabe? Parece que tu faz...”

"Entendo, mas tu não vai comer?”

Ele bufa, passa a mão nos cabelos nervoso, então olha pra ela meio que desistindo.

“Que tipo de comida vende nessa birosca?”

“Benzinho, só me dê um cigarro e eu escolho por ti.” – e sorri jocosa.

Astolfo puxa o maço, solta um piparote no fundo e estica para Leila. De repente, não está mais nervoso, ou puto; não, ele nunca esteve puto, pois entendeu o que veio fazer ali. Então no segundo seguinte, a mesa parece ter sido colocada entre os dois de propósito, assim como as cadeiras foram escolhidas por alguém, e os pratos que lavam na pia sabe estarem limpos dentro da medida necessária, pois cada pequeno poro da esponja absorve seu quinhão de água e sabão e tudo é tão exato quanto os decibéis do som de seu isqueiro que se fecha exatamente agora.

Leila traga seu cigarro ainda com os olhos sobre as mãos de Tofo e só libera a fumaça quando tudo volta ao normal.

quarta-feira

Produção: diálogos.

Chego, arfando, para uma senhora catadora de papelão:

"Eu... preciso falar com a senhora. Ai... arf... quero alugar sua carroça."

"Ah, meu querido, eu não posso. Preciso deixar a carga ali no depósito e depois ir ver meu filho na UTI. Tu já deve tá sabendo."

"Não, não sei."

"Ele foi baleado no Morro do (... não lembro), deu na TV. Tu não assiste jornal?"

"É que eu... não assisto muito TV. Posso ir com a senhora?"

"Pode sim."

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Ela me introduz a um grupo que repousava a sombra de algumas árvores. Breve negociação, estou voltando com um - agora sei - carrinho de papelão, pois quem puxa carroça é cavalo (as delicadezas da língua). Pé na estrada, acompanho o catador que me alugou até o set.

"Então, tu sabe que no set tem uma hierarquia, cada um tem a sua função. Eu por exemplo tô na produção, que é o pessoal que arranja as coisas."

"Ah, sabe como chama isso lá no morro?"

"Não. Como?"

"São os correria, os pessoal que arranja as coisa."

"Pois é, eu sou assistente de correria."

E aquele sol de rachar.

terça-feira

Possibilidade

É revirando o começo da história que talvez o final comece a fazer sentido. Há, no entanto, algo de intraçável em toda história, e por mais registrada que seja, talvez o importante sempre se perca.

Quando Leila acordou na cama de Astolfo, naquela primeira vez, seu celular despertara muito depois do garoto se levantar e batucar em seu teclado. Resmungou um algo de intragável e comestível, sentia um gosto forte de nicotina nos dentes, como gato morto. Astolfo estava feliz e recontava os passos até a cozinha na esperança de diminuir o tempo. Recolhia o lixo como um bom idiota. Lavava a louça com um sorriso besta.

Leila sentia uma puta ressaca e mesmo assim esticava a mão em direção ao maço. Quando foi que nos conhecemos mesmo? Ao que tudo indica, as impressões de Astolfo sobre a memória de Leila falhavam. Não lembrava sequer de ter fumado catorze cigarros enquanto jogavam sinuca, apesar de tê-los contado. E guardou a última ficha na bolsa, como sempre fazia pra ter lembrança de seus primeiros encontros: figurava em sua casa, na última prateleira da estante de seu quarto, uma baderna de badulaques cujo o significado irrastreável, porém latente, os mantinha intactos. Aquela última ficha viria a se perder afogada naquela prateleira até a derradeira mudança quando rolaria para fora pela janela.

Da mesma forma, Astolfo defenestraria sua chave para trancar pra sempre os dois dentro de seu apartamento, mas manteve alguma dignidade e reclamou do cigarro de Leila, pois não queria voltar a fumar e ela tornava tudo mais complicado. Leila sabia tornar as coisas complicadas, e começou a maquinar para se manter afastada de Astolfo, mas talvez não seja isso. Leila, quem sabe, quisesse que ele jogasse aquela chave fora; ou, pode ser, estava pouco se fudendo; não podia, talvez tivesse filhos em Jacarepaguá. Mesmo naquele momento, a verdade já estava perdida. Hoje, qualquer um dos dois sequer lembra de ter acordado.

No ônibus.

Você sentou no meu lado, como há muito, e por um instante pareceu querer o passado, mas só estávamos sozinhos e só isso. Estiquei o fone direito e você plugou no seu ouvido, a música fluiu em ambas as direções, não como uma ligação entre nós dois, mas um algo externo que compartilhávamos.

“Costumávamos nos sentar lado a lado.” – você disse e seu braço deslizou no meu instintivo-acidentalmente. “Mas agora você senta aí sozinho e tem todas as mulheres disponíveis e todas as possibilidades tão disponíveis como nada que possa nos aproximar.”

“Se for assim, você também está disponível.”

“Tudo é tão lógico, não?”

“Não, há tudo o mais que não faz sentido e não pode ser dito. Você está bem?”

“Sinto uma dor nas costelas, como se curvassem pra dentro.”

“Volte a respirar porque assim você se infla e elas voltam pro lugar, voltam a serem costelas. E tente parar de se culpar.”

“Nesse caso, vou ter que te culpar.”

O ônibus pára, o fone cai no banco, poc, e ela desce deixando pegadas sonoras no chão de lata. Tudo vibra e acelera pra longe, conversas e silêncios metálicos, um parafuso solto deixando o engate bater, a porta abrindo de assalto, um pulo breve na calçada e uma formiga que morde silenciosamente meu tornozelo.

quinta-feira

P

Natália, de tanto comer fósforos, tinha a boca inflamável. Assim, a primeira faísca a fazia queimar uma chama laranja e amarelo; era tão súbito e maravilhoso quanto fogos-de-artifício. Também por conta desse hábito sua boca se tornou fosforescente e podia-se rastreá-la facilmente em qualquer um dos lugares decadentes que freqüentava na noite paulistana, de forma que mantinha sempre à mão um isqueiro com o qual estava pronta pra incendiar qualquer desavisado.


Curioso com o fato, fui levado a pesquisar as propriedades do elemento. Me chamou a atenção que o fósforo está presente tanto em fertilizantes como em pastas-de-dente. Não pretendo entrar em detalhes escatológicos, mas são evidentes as dialéticas sujeira/vida e limpeza/esterilidade denunciadas pelos seus derivados, o que desemboca numa estética meio junkie aprazível a nossa “heroína”; logo, considero que – além de fisicamente – a garota foi também afetada psicologicamente pelo hábito. Que tu acha, Natália?


“Bobagem.” – e lambe o piercing labial.


“Assim tu me desestimula.”


“Quer saber, chega dessa conversa mole, desse blá-blá-blá, vai pagar ou não vai?”


Por conta de suas habilidades, todas as quintas, quartas e “quem-sabe” segundas ela trabalha queimando credores de um tal Bob D., mas só os que não pagam. Eu devia a um cara chamado Little Nose Moe, ou “Caesar Salad” Moe, até Bob aposentá-lo. Acaba que hoje é segunda e já nasceu nublado.


“Antes de me queimar, a gente podia jantar. Que tal?”


“Isso não vai livrar a tua cara.” – puxa o isqueiro.


“Não. Vai encher nossa barriga.”


“Que cê tem aí?”


“Pipoca, nuggets e três... não, quatro 7 belo.”


“Sobremesa?!”


“Sim, sobremesa.”


Nunca imaginei que 20 centavos pudessem me valer mais 30 minutos de vida, ou que, após sua experiência com os não-metais, Natália tivesse partido para algo mais doce. Decidimos pelo nuggets como prato principal. Giro o botão do forno, mas não acendo. Sento do outro lado da mesa e nos olhamos por uns minutos.


“Que tal um molho pra acompanhar?” – pergunto.


“Ketchup?”


“Esperava ervas finas?”


“Pra quem não trabalha, tem bastante coisa dentro desse apartamento.”


“Nada aqui foi comprado.”


“Cê é pequeno, não devia se meter com Bob.”


“Ele que se meteu comigo. De outra maneira, tu não estaria aqui.”


“Sorte sua, então.”


Puxo um cigarro e olho pra ela. Natália detona uma faísca e sopra fogo e fagulhas na minha direção, mas espantosamente as chamas se espalham num leque mágico e mergulham tudo numa inundação laranja, num fluído de calor e entropia. A mesa, o computador, o fogão, as louças díspares, as roupas, tudo torna-se líquido e disforme ou simplesmente desaparece reduzido a cinzas.


Exceto ela.


Não pude vê-la levantar com sua pele quente e ainda imaculada e misturar a raiva e o assombro, num gesto automático, instintivo, pra cuspir no meu corpo chamuscado um misto de saliva e despedida, recuperar seu isqueiro vermelho e correr ainda descalça para a rua onde ninguém pudesse descobri-la, coberta com uma cortina semi-inflamada sobre os cacos e as bitucas coladas às solas dos seus pés, entre prédios e o vazio permanentemente vigiado da madrugada.

Terrorismo Poético

A reação do público ou o choque-estético produzido pelo TP tem de ser uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror - profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta - não importa se o TP é dirigido a apenas uma ou várias pessoas, se é "assinado" ou anônimo: se não mudar a vida de alguém (além da do artista), ele falhou.

Hakim Bey, em CAOS - Terrorismo Poético e outros crimes exemplares.


Inácio nasceu sob o signo de Aquário, com ascendente Escorpião. Eu particularmente não sei o que isso possa significar. Não pude conhecê-lo, ou até mesmo encontrá-lo pessoalmente, mas na tentativa de saber mais sobre ele descobri isso: Aquário, ascendente Escorpião. Certa vez, ao abrir a caixa de correio, talvez por engano, recebi suas anotações e planos, o que concerne vinte folhas de uma caligrafia egípcia e praticamente ilegível. Primeiramente, ignorei aquelas folhas e as deixei repousando sobre a mesa da sala. Então, num nebuloso dia de Outono, o vento soprou pela sala e espalhou aquela carta pelo chão. No outro dia a mesma coisa, e de novo, até que, perdidas pelo menos sete folhas, decidi me render e prestar atenção ao documento. Comecei então um processo moroso de tradução cujo tempo me tomou um mês. Após esse período, quando "traduzidas" três folhas e meia, desisti do trabalho. Escrevo esta carta com o intuito de valorizar o silêncio monástico de Inácio, pois eu mesmo não pretendo realizar qualquer das tarefas a qual fui incumbido, seja pela vontade do aquariano, seja por seu silêncio. Transcrevo abaixo três de seus atos.

Ato nº 3, incitando a desilusão no amor romântico.

1ª fase:
Crie pombos em jaulas até estarem adultos, de preferência dentro de um apartamento. Garanta que o cheiro se espalhe por todo seu bloco. Lute contra os condôminos pelo seu direito de criar animais dentro de sua casa, desista, limpe tudo e faça um churrasco de reconciliação com parte dos pombos, alegando serem galetos.

2ª fase:
Amarre mensagens nos pés dos pombos restantes e liberte-os. Essas mensagens devem ser de cunho pessoal, como um segredo soprado no buraco de uma árvore, e sempre revelarem alguma desilusão amorosa. Sugestões:
"Tânia, tenho traído você desde nosso terceiro mês juntos."
"João, terminei com você pois abortei uma criança nossa. Eu não pude suportar a idéia de ter um filho teu."
"Paulo, comecei a te namorar porque estava muito sozinha. Mais tarde, descobri que não te amava e não tenho coragem de desmentir isso pra mim mesma agora, que dirá pra ti."

3ª fase:
Escreva em vários guardanapos de uma praça de alimentação o seguinte:
"Lotte mal chorou no enterro de Werther."
Ou variações. Então, vá aos banheiros, espalhe camisinhas usadas e páginas da playboy com os dizeres:
"Como você pode?"

Ato nº 25, a náusea e a carne.

Compre um filhote de cabra e alimente-o com as mesmas verduras que você comeria, dê-lhe leite, durma com ele, faça carinho; enfim, apegue-se ao bicho. Faça isso por muito tempo, até que ele cresça e você o ame. Comece a passear com ele pelas ruas do centro e conheça as pessoas, faça com que elas se apeguem a ele também. Seja gentil e divida momentos felizes com elas, tornem-se amigos.
Um dia, quando todos o conhecerem - você talvez já tenha se tornado uma figura caricata do lugar -, monte uma churrasqueira no centro e abra a garganta do seu amigo. Chore copiosamente enquanto faz isso. Caso a polícia lhe prenda, grite: "você disse que não tinha problema!" repetidas vezes. Caso não, carneie-o e asse. Depois, venda.

Ato nº 47, os pequenos pagãos.

1ª fase:
Crie um livro de magia negra. Arranque as páginas e distribua para crianças nas saídas dos colégios, junto com lápis coloridos e giz de cera. Espere anoitecer. Cole as folhas restantes nos muros do colégio alvo.

2ª fase:
Arranje 13 sapos, 7 gatos pretos, muitos grilos, um doberman, uma coruja, 23 morcegos mortos e solte-os no playground pouco antes do recreio. Quando a baderna começar, solte vários fogos de artifício para complementar a festa.

3ª fase:
Escreva cartas para os pais das crianças do colégio alvo. Elas devem revelar a existência mágica das crianças, alertá-los sobre a inexistência do pretenso poder deles ante os pequenos, amaldiçoá-los e agradecer os serviços prestados mas demití-los. Assinar como Edgar Morin.

Ass: Thomas Jefferson.

sexta-feira

A antropofágica senhora Santelmo

Atravessando as paredes de um vilarejo inominado próximo a Puerto Deseado, perscrutando suas frestas, levantando os tapetinhos rendados em frente às portas dos barracos, ou até mesmo, com todo o cuidado e silenciosamente, caminhando pelas ruas desse pequeno vilarejo tão próximo do fim do mundo, o viajante desavisado deve espantar-se com a falta de habitantes. Ninguém. É como um deserto. Como praia no inverno.

Então, virando uma esquina, caminhando na sua direção, desponta ela, a gloriosa e antropofágica senhora Santelmo. Baixinha, buchudinha, os olhinhos azuis ou cinzas – depende se é maio ou março –, com seu xale, sua bengala e seu cachimbo. A senhora Santelmo não é tropicalista, mas tem lá seu requebrado. Falastrona, vai se aproximar do viajante, convidá-lo a tomar um chimarrão naquelas cuiazinhas argentinas, oferecê-lo fumo, estralar os dedos, soltar aquele pigarrinho e começar a contar a história de Santelmo, pólo da produção de lã argentina nos anos 50. Aí, o viajante confuso, vai me perguntar: “Não era inominado?”

Rindo, sempre contente, a senhora Santelmo facilmente explica a contradição: a cidade não existe mais, porque já não mora ninguém ali.

Ora, e você senhora Santelmo, onde mora então?

Eu já não sou habitante dessa cidade. Moro na Santelmo dos anos cinqüenta quando os carros eram grandes e raros, tão raros quanto os beijos dos jovens escondidos atrás das igrejas. Carrego dentro de mim – e dá aquele tapinha no bucho – os pedaços de cada habitante que teve a sorte de compartilhar comigo esse sonho dourado. São todos meus filhos, eu os mantenho aquecidos e seguros, para que nunca venham a descobrir aquilo no que nosso sonho se tornou.

Ainda confuso, sem entender nada, o viajante vira pra mim e diz com os olhos turvos: “E essa velhinha, quem é?”

Meu caro amigo, essa velhinha é o que há. Todas essas paredes, os tapetinhos de rendinha, os retratos coloridos à mão, os cachecóis de lã – mas só os vermelhos e os amarelos – são ela, além dessa simpatia aí na sua frente. Você bem que poderia virar um deles e ir morar naquela Santelmo, ou talvez prefira essa, basta apelar a pequena senhora. Ou, creio eu, você pretende conhecer antes a pequena Lili de Buenos Aires, o sombrio Juan de Corrientes, e tantos outros em tantas outras cidades, que, assim como este vilarejo, comprimem em suas frestas um pequeno segredo terrível e maravilhoso. É possível, também, que você só deseje voltar. Nesse caso, é arriscado, mas basta responder: “de onde você veio?”

quinta-feira

Taquicardia


Há de se entender que, para uma criança, o interesse dura o tanto da novidade. E, o tragicamente pior, tragicamente imbecil, que os adultos não passam de crianças com facas. Eu acabo de me cortar pela primeira vez, e na expectativa do segundo corte, reteso. Entenda-se, por fim, que em adição à experiência vem uma estúpida e falsa predictabilidade acinzentando o mundo.



Namoro ela faz um mês. Já não suporto sua presença, não a reconheço. Ela parece sentir saudades pelo telefone. Arranha um beijo, parece entender. Passei na rua e dei tchau de longe. Sou um covarde, mal posso encará-la. Me despeço, sem beijo. Como chegou a isso em tão pouco tempo? Ela já não me encanta como antes, caminha desengonçada na minha direção e me irrito porque eu sei o que vou fazer, imagino como ela vai reagir, mas apesar de tudo não tenho certeza.


Aos poucos mergulho na conversa. Como vai e tudo o mais. Minha namorada sentada do outro lado da mesa, um simulacro opaco daquilo que passei a chamar assim. Ser minha namorada talvez tenha estragado tudo. Ela também sente; uma aura que circunda tudo e faz o mundo murchar. Foi rápido, apaixonar-se, querer-se, cansar-se, desistir. É melhor encurtar a conversa, já não presto atenção. Aperto a mão dela com força pra tentar espremer pra fora aquilo que era há um mês atrás, talvez exista um pouco ainda. Dói um pouco e passa, de novo e nada. Vamos sair daqui.


Eu não quero mais as tuas coisas, não quero mais o teu nome vinculado ao meu, a obrigação de te amar pros outros verem, me sentir obrigado a te amar, namorar me fez isso e eu não quero mais, porque não é espontâneo, porque não é verdadeiro e é a única condição de se namorar - que eu preciso te amar -, e me obrigar a isso é sujo, eu não posso mais e imagino que tu entenda. Compreendo não ser tua culpa, mas é o jeito que tu sabe fazer, é dar e receber, e sendo assim não há mais o que dar porque acabou. Eu não me sinto mais inteiro ou mesmo parte de algo, é nojento. Tua presença hoje evoca tudo isso, e também por isso acabou.


Nojento aqui é tu e esse teu egoísmo sincero. Eu deveria saber desde o começo pois a verdade é que nunca foi sincero, que os gatos na rua são menos sujos e mais idôneos e ainda assim livres, tudo aquilo que tu chama amor é um engodo asqueroso já que na tua cabeça mora um espelho em frente ao teu retrato. Agora mesmo tu deve imaginar que teus olhos não são dignos das minhas lágrimas; então olha pra ti e tua comiseração, se choro é porque tua auto piedade é uma armadilha comovente. Não me peça desculpa, ou me negue qualquer partícula de responsabilidade, eu não sou uma criança e sei lidar sozinha com o que sinto.


Então é isso?


Esperava que eu te segurasse pelos braços?


Do opaco simulacro algo se ilumina e eu vejo um espectro do mês passado, a criatura por quem me apaixonei e não aquele mutante. Ela se afasta sem abaixar a cabeça fazendo o tempo comprimir entre um mês e agora e desaparece na esquina deixando o vácuo do que acabamos de destruir.

segunda-feira

As Moabitas


A raça maldita dos moabitas infesta a Terra já há muito, desde o incesto culposo das filhas de Ló, logo em seguida do fim de Sodoma e Gomorra - que por sinal também resultou na metamorfose de sua mãe em uma estátua de sal. Pode-se reconhecer um moabita pelo suor oleoso que brota de sua fronte em dias de calor durante as meias estações. O mesmo recende à dama-da-noite, muitas vezes denunciando a presença de sua influência maligna, e que evidencia a ligação de sua existência com a morte e o sombrio.

Carol traz no sangue o traço há gerações filtrado de sua ascendência malévola. Seu suor de miscigenada exala uma infinidade de cheiros, mas mesmo assim um sommelier ou um basset poderiam indicar com facilidade a presença da famigerada flor. Nos momentos de raiva cega, nota-se a mudança de tom de sua íris, que de castanho passa a castanho escuro. Ou talvez seja só o calor do momento, sei lá.

A verdade é que Carol, já faz um tempão, nem me liga. Ela, que disse que não ia me abandonar, sempre deixando recados na geladeira e trazendo o pão quente no fim do dia. Talvez seja determinista por demais afirmar que essa atitude derive diretamente de sua linhagem, mas eu prefiro culpar Ló e o vinho do que minha bela Carol. Nunca antes conheci uma Moabita de olhos tão castanhos, cabelos tão suavemente encaracolados e uma pele tão... macia. Espero que ela tenha perdido os dedos pra justificar não ligar há tanto tempo.

Mentira.

É de amplo conhecimento que os Moabitas surgiram na região onde hoje se encontram a Palestina e Israel, e também que o povo constituinte do então reino não passava, no início, de algumas tribos nômades*. Como eles, Carol transita entre oásis e faixas extensas de deserto - metafóricamente, digo. Eu, que sou o sedentário, fico aqui, no oásis, esperando que ela se canse e pare de viajar. "Esperando", é claro, quase como esperança.




*Essa informação, e bem possivelmente outras, não tem qualquer base em pesquisa. Foi tudo muito superficial e tal.

quinta-feira

Absalom



http://en.wikipedia.org/wiki/David#Bathsheba_and_Uriah_the_Hittite


Existe, no fundo deste salão, sob as claras abóbadas engessadas, engastado num pedestal, um segredo. E, revelado este segredo, revelar-se-á outro, e outro, até que não haja segredos e então se faça a luz. Mas enquanto caminho sobre este tapete de motivos alienígenas, não há pedestal lá no fundo, e as colunas parecem se abrir conforme alcançam o horizonte como se eu caminhasse no sentido errado, ou houvesse um fluxo em direção à outra extremidade.

Você, que caminha comigo, já observou estas coisas? Já teve a dúvida e olhou para seus pés na ânsia de descobrir se são eles que empurram para trás o chão ou o chão que os impele para frente? Somados ambos, não estaríamos parados?

Não, não estamos. Você se lembra, eu sei, de quando ainda no jardim podíamos dar a volta na construção. Naquele tempo eu podia pressentir tuas indagações e mesmo que você insistisse em perguntar já não havia como responder.


Davi sentou-se no chão para descansar. Ele sabia que não havia como voltar, que Betsabá já se cansara de caminhar e que as colunas, por mais que sumissem, não revelariam coisa alguma. Ela, por sua vez, mirou Davi com um sorriso nos lábios e soube que o pobre homem já não tinha os miolos de outrora. Segurou-lhe a mão, pousou nos dedos um beijo seco e apoiou-se na coluna a seu lado.

"Querido, lembre de Uriah e como você armou para que o abandonassem no campo de batalha a sua própria sorte. Havia respostas naquela época, ou todas elas eram pedaços de pequenas verdades que você coseu juntos e transformou num reino?"

"Tudo aquilo que é, simplesmente é, meu bem." - e acendeu um cigarro.

Betsabá sentia falta do hitita vez que outra, mas não arrependera-se da escolha. Seu único remorso era o filho natimorto. Davi ofendera Deus e ele lhe matara o filho, como haveria de matar o seu próprio anos mais tarde. Havia algo na providência divina muito intrigante, cruel, e incrivelmente arbitrário.

Todas as verdades de Davi pareciam incrivelmente arbitrárias, seu Deus, seus julgamentos, suas provas e sua lógica derivava daquilo que "simplesmente é". A traição de Uriah era mais uma de tantas que desembocavam na providência divina e seu mau-humor selvagem. Já não havia o que fazer.

"Passa o maço."

"Ó."

"Estou grávida de novo."

"Esse, a gente pode chamar de Absalom."

terça-feira

A garota e o armário


Quando vi aqueles dois com o armário, pensei que lá vinha uma das velhas cantadas, daquelas nojentinhas dos trabalhadores braçais. Mas, ao contrário de tudo, me perguntaram se eu gostaria de conhecer o armário que carregavam.

“Como se pode conhecer um armário?”

“É verdade, não é simples. Você deve se aproximar com cuidado, calada e com calma, pois armários são muito arredios e se fecham com facilidade. Então diga seu nome, mas ainda não o toque, diga seu nome em voz baixa e espere pela pergunta, que ela logo vem, eles não se agüentam, logo vem. Esse momento é maravilhoso e singelo, pois do meio da massa de madeira pode-se escutar claramente: “ãhn?” Ele finalmente se abriu, e agora você vai fazer perguntas e ele vai responder, com sinceridade, muita, porque não há nada mais sincero que um armário. Exceto, talvez, por alguns bidês.”

“Você é completamente maluco.” – e saí dali.

Não olhei pra trás. Algum tempo depois essas palavras voltaram a minha cabeça como um trem descontrolado e cravaram por dentro nos meus ouvidos. Talvez houvesse algo de cósmico-enérgico-plurialgo nos armários que confirmasse essa teoria, talvez eles até mesmo falassem.

Talvez olhassem.

Paguei meu café e voltei pra casa encucada.



E passei a me trocar de luz apagada.

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Exercício de Narrativa Cinematográfica.

domingo

Balada Paulistana

So, what do you have to offer?

A inglesa coloca em termos práticos a dinâmica da paquera e, de quebra, me coloca na sinuca de bico. De memória, a minha imagem refletida num espelho não é lá um informe publicitário, imaginem num copo de cerveja. Também não é difícil afirmar que o inglês prejudica consideravelmente minha eloquência, então apelei pro sentimental, não sem certo receio.

A piece of love?

Ela riu, é claro. Pensando bem, não foi uma risada maldosa, talvez ela tenha levado como piada. Em geral, as pessoas não consideram que tudo possa se resumir a isso, que dentro da continuidade possa se divisar momentos bons dos quais constituimos nossa memória e daí a teoria da homeopatia amorosa, algo como o amor anti-épico, ou cotidiano. Ao mesmo tempo, não tenho certeza se com isso acabo perdendo algo de grandioso e extremamente bonito, uma vida que se imagina há tanto e se perde homogeneizada pela simples existência. Ou pode ser exatamente isso, só que se anda tão insensível e, bom, ela respondeu.

Seems more like a piece o'meat.

Filha da puta.

What?

Just thinking out loud. And if it's made o'meat?

It doesn't sounds good enought for me.

Dou as costas. Não perca tempo, não incomode as pessoas além da conta, seja educado, supere a decepção, mais uma cerveja e o ar frio de São Paulo. Caio junto com a temperatura em um misto de frustração e asfalto. Alice só vai tocar o chão depois de uma queda lenta, enfadonha, e cá no fundo eu espero. Quando você vai chegar, meu bem, quando volta? Um dia todos nós fomos crianças, morríamos de medo da rainha de copas, mas agora parece que você não vem mais, que o mundo das maravilhas ficou pra trás muito fundo na toca do coelho.

Nem era tão bonito, nosso mundo, ou tão pequeno, não era exclusivo ou permanente. Eu vou parar de sonhar, vou sair da toca a procura de você, Alice-querida, Alice-de-ontem, éramos dois desencontrados onde não havia inglesas e frio, na terra das criaturas falantes. Quando elas se calaram? Não, chega, paremos de sentir saudades, paremos com aquela velha poesia, cesse a velha mentira, a velha idealização, porque eu cansei da minha covardia. Venha e ponha seus pés no chão.

Excuse me, I didn't mean to be rude.

Oh, that's ok. I'm fine.

Do you wanna go back inside?

Ah, eu poderia viver de remorso e piedade.

What?

Just thinking out loud.


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Olhando nos prospectos do meu contador descobri um pessoal completamente desconhecido que visita esse blog. Como eu achei que só os chegados me visitassem, fiquei um pouco espantado. Tinha gente até de Portugal entrando nessa bagaça! Ainda tô pensando num jeito de disponibilizar uma via direta de comunicação pra galerinha tímida, mas fica aqui registrado que me agradaria conhecer essa intelectualidade sarada que não cansa de se informar.

Abraços

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Só atualizando porque ela respondeu:

http://thephant21.blogspot.com/2007/05/acordei-com-o-telefone-berrando-em.html

O que eu tinha escrito:

http://opessimo.blogspot.com/2007/04/tribunal.html

quarta-feira

Manifesto

Eu sonho os sonhos empilhados dos milhares de anos, das vidas empilhadas dos milhares de sonhos que todos nós já pudemos sonhar. São todas as mesmas imagens imaginadas daquilo idealizado pela imaginação dos milhares. Há, sim, algo de bom e reconfortante nisso e há, sim, algo de recorrente na refusa desses mesmos sonhos. Resta a constante de sonhar, de querer sempre algo mais, sempre algo além, sempre o próximo passo descompassado do caminhar. Onde mora o meio-termo, ou o célere, ou a carne faz muito perdida; onde todos eles moram é lá que nunca vamos chegar. Mas corra, meu bem, corra, porque é melhor do que ficar parado. Quem pára morre, quem pára apodrece e apoderecer dói, como dói, muito mais comparado ao caminhar. E não esqueça, por favor, sob hipótese algum, há sempre um novo caminho na mata fechada, difícil de atravessar, ele vale o tanto da tua curiosidade.

sexta-feira

Bukowskianas

O segredo de não terminar um namoro é não começá-lo.

Aliás, o segredo de não se apaixonar é não idealizar as pessoas mantendo em mente a miséria da condição humana. É sempre saber, sempre manter-se consciente, de que todas elas cagam, invariavelmente, meu amigo, todas cagam. Olhar praquela cocotinha e imaginar o borrão. Por mais bem feito que seja, por mais elegantemente, o ato de cagar é estéticamente distópico, no máximo engraçado.

Tive um insight dia desses. Caguei o mais harmoniosamente possível, mantendo a classe, mas ao olhar pro lado recebi o baque da desolação: no paper. Revirei tudo, não tinha nada. Guardei meu espírito intato e parei de olhar pras minhas meias porque essa não era a hora de ser punk. Subi as calças, afivelei o cinto com desgosto, e meti pra rua. Fui comprar o papel já cagado, caminhando como o caubói da Marlboro, segurando as nádegas bem juntas. No desespero, agarrei o maior pacote que encontrei e, no caixa, fiz graça pedindo um maço, mas tava na cara. Ao chegar em casa, alguém ocupava o box cantarolando Maybelline.

Maybelline, why can't you be true?
Oh,
Maybelline, why can't you be true?
You've started back doing things that you used to do

Sentei e chorei a miséria da condição humana.

domingo

Tribunal

Quando abri a porta, todo o ambiente vibrou escuridão. Fui eu quem a trouxe aqui, agora é tarde. Podia ter deixado em casa, nem precisava ter convidado, não queria. Mas tem certas coisas que a gente não pode evitar e todo o papo de compromisso e tal, então eu olho pra ela e sorrio porque é sempre assim, me faz bem. Querida, sente aqui, vou buscar uma cerveja, que morena linda, oitudobem, freezer, cerveja, dois copos. Eu te vi olhando pra ela. Bobagem, Nati, bebe ó.

As garrafas caem em cascata da mesa, quebrando-se aos pares. Você bebeu demais, vou jogar truco, não, é truco mesmo, esquece a morena, truco com o Josias, ali na mesa, ali ó. Ela levanta indignada, caralho, ó o Josias ali, tá vem comigo então, vem por favor, não faz assim, eu sei, aquela nem conta, você também já fez, pára com isso, não me bate, pára, a gente conversa outra hora pode ser? Quero agora, agora não que vai começar o jogo, já vou Josias, me larga, entendi, não vou nem olhar, tá, tudo bem, beijo.

Sento do lado do Josias. Colé? Então faz a mão que eu vou lá no banheiro, não, na boa, já volto, se liga meu, já volto, pega outra enquanto eu vou lá, não tô bem, pega outra que depois eu explico. A morena olha, penso na maldade, e aí benzinho, olho pra trás, por onde anda a Nati? Não conseguiria sorrir agora, mas você é linda, chega pertinho, concentra na cerveja Josias, vamos ali, no feminino?, pode ser. A porta abre gemendo gostoso.

Ela se aproxima, você beija bem, minhas mãos descem, já te disse que tu é linda, sobem, linda mesmo, jogo contra a parede, descem, tava olhando pra ti a festa toda, sobem, esquece ela, somos só nós dois agora, bem encaixado agora, isso, ah, safadinha, isso, continua, não pára, por favor, aimeudeus, isso, mexe, mais, mais rápido, peraí, peraí, aaah! Acho que dá tempo pra mais uma.

Saio do banheiro me apoiando na parede, lambendo os beiços, e logo a Nati estala na minha cara. Que eu fiz? Como assim, é o feminino? Ah, entrei errado, então! Não foi tu que disse que eu tava bêbado, calma, só fui mijar, a morena sai, agora fudeu. Ela pára de falar. Só olha. Querida, pensa bem, Nati, fala comigo, volta aqui, volta aqui, eu te amo, meu bem, volta. Ela atravessa a porta, que fecha numa última sentença.


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Logo, logo, ela me responde:
http://thephant21.blogspot.com/

segunda-feira

Promiscuidade

"Não."

"Por quê?"

"Ué, não consigo entender essas coisas. Eu peido em público como todo mundo, tiro meleca sem o menor constrangimento, isso tudo. Sou absolutamente normal. Por que tu ia querer ficar comigo?"

"É outra, certo?"

"Certo."

"Quem é?"

"Pra que tu quer saber?"

"Fala!"

"Não vou falar."

"Tudo bem, eu descubro. Essa vadia vai se ver comigo!"

"Tá maluca, porra!?"

"Ela não tem o direito."

"Caralho! Que saco!"

"Tu faz de propósito, né?"

"Quer dizer que eu não posso namorar ninguém?"

"Quero dizer que tu pode me namorar."

"Pára com esse papinho, vai. Não tem ninguém, eu só não quero."

"Vai te fuder."

E ele sentiu que nem só de sinceridade é feita a nobreza.

domingo

Fligth A147

Continuando a série Leila e Astolfo, o não-casal. Depois de um ano, interrompido por alguns encontros esparsos, retomo o relacionamento do dois sem promessa de frequência ou continuidade. Além disso, algo mudou no estilo, não sei se vão notar, mas me parece diferente escrever hoje como era ontem. De qualquer forma, ficam os links para que se possa averiguar:

http://opessimo.blogspot.com/2005/09/o-casal.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/astolfo.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/solido.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/nasce-joo-roberto.html
http://opessimo.blogspot.com/2006/12/astolfo.html

Esse era um projeto contido em algo maior, um livro em que eu contaria em episódios não-lineares as experiências de casais estranhos. É uma pena que grande parte não esteja publicada no blog para a comparação dos bravos interessados. De qualquer forma, acho que já dá pra ter um panorama superficial. Vamos ao conto.


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So I was wrong.
What could I do?
I knew all along.

The Gossip – Coal to Diamond


"Welcome aboard to flight A147 from Porto Alegre to..."

Leila continua maquinalmente o texto de sempre sobre o assunto de sempre. Sua cabeça, em contrapartida, perscruta outros pensamentos. Todos eles têm como cenário a figura desolada de Astolfo no retrovisor do carro. O garoto mal se mexia e, por Deus, desde quando ela passou a se importar? Mas não haviam Astolfos nas nuvens ou nas asas do avião para contrária-la, não haviam passageiros com ânsia ou com o cinto desafivelado para distraí-la.

Esquentou o café na cafeteira, arrumou o lanche no carrinho, o que mais podia fazer? Era solitário encontrar as aeromoças conversando sobre pilotos e passageiros enquanto tudo que lhe vinha a cabeça era a imagem do retrovisor. Já não era mais a dona das rédeas, a situação começava a ficar insustentável. Devia ter dado uma chance pro garoto, um telefone já seria de bom tamanho, mas não, era melhor não se envolver. O problema é que "o melhor" nem sempre é.

Caminhava num corredor em direção a Buenos Aires. Cada passo significava milhas aéreas que Leila não poderia retirar mais tarde pois elas se transformariam em "tarde demais". Divisou a comida entre crianças, velhas gordas e os habituais - afinal, eram todos habituais de qualquer forma. Ao fim, mastigava um amendoim salgado e bebericava café no seu assento exíguo. O piloto já passava as velhas cantadas quando terminou seu café e sentiu o desejo irreprimível de fumar. Acendeu escondida um cigarro imaginário, mas não se pode simular tudo o que faz falta.

O avião então pousou sutil como a imensa massa de metal que é. Algo rangeu, uma outra coisa tremeu e no fim tudo parou. A vontade da pequena massa de carne enclausurada no peito de Leila foi análoga, ansiava pelo torpor da noite que dormiria em breve. Já a xícara de café atingira o objetivo deitada inapropriadamente no chão. Depois da reprimenda, Leila chorou algo como desgosto e arrependimento, foi para seu quarto, guardou sua parca bagagem, deitou na cama, esperou o sono chegar olhando para o teto alienígena de suas acomodações e caiu num sono permeado da recente realidade.

quarta-feira

Críticos

"Líquido seminal que pesa nas minhas bolas!? Como tu tem coragem de fazer poesia com essa merda?"

"Pô, André! Tu nunca leu Bukowski? A geração beatnik já meteu uma bica nesses teus padrões estéticos!"

"Cara, a geração beatnik é outra coisa. Eles tavam chutando o pau da barraca. Mas tu botou essa merda aqui no meio só pra satisfazer teu narcisismo mórbido, essa brincadeirinha infantil pode até ser engraçada..."

"Durval, mais uma!"

"Porra, não me interrompe! Onde eu parei?"

"Não sei, parei de escutar em algo como 'essa merda'."

"Peraí... Ah! Tudo bem, eu entendi que tu tentou expressar o teu desejo carnal, mas isso aqui não tem profundidade. Parece mais uma brincadeirinha, uma infantilidade pra chocar as pessoas. Só que as pessoas não se chocam mais com essas coisas, tá todo mundo anestesiado e o 'líquido seminal' das tuas bolas... "

"Valeu, Durval! Toma aqui e mantém essa mesa abastecida."

"Tu realmente não vai prestar atenção!?"

"Relaxa, cara. O problema é que tu fala, fala, mas eu acho que é birra por causa da Amanda. Admite que gostou e vamos tomar essa cerveja."

"Mas eu realmente não gostei!"

"Tudo bem, eu te perdôo."

Giaeli e Sisera


Artemisia Gentileschi (1593 - 1653) aos 17 anos foi estuprada por seu tutor, Agostino Tassi. Essa não coresponte exatamente à atitude de um tutor que preste. Este era particularmente cruel e inescrupuloso. Durante as investigações, descobriu-se que ele planejava matar sua mulher, cometeu incesto com sua cunhada e ainda planejava roubar quadros de seu colega Orazio Gentileschi, pai de Artemisia.

Uns oito anos depois, ela pintou "Giaeli e Sisara", seguindo a temática de "Judith e Holofernes", primo mais famoso do primeiro. Contra a habitual doçura associada às mulheres, estas partiram pro ataque e mataram seus desafetos com a serenidade de um serial-killer. No caso de Sisara, enquanto o descuidado Giaeli dormia.

Apesar disso, Gentileschi não pinta vilãs, como a Dalila de Sansão. Quero dizer, elas poderiam ser consideradas vilãs, mas essa não é a forma como estão representadas. Sisara fecha os olhos como a justiça vendada pronta para descer sua espada sobre os infratores. Gentileschi enfia um prego na cabeça de Tassi, Judith decapita Holofernes e carrega a cabeça dele num cesto com a ajuda de sua criada. Os quadros transbordam vingança contra homens colocados em posição inferior, subjugados, indefesos. Estes não morrem sozinhos, mas com as ilusões de uma garota de 17 anos, sob a influência macabra dos sentimentos mais viscerais da autora. Por isso são quadros que me confundem, ofendem e fascinam; politicamente incorretos, mas arrebatadores.

Criaturas Noturnas

O pequeno Chico, certa vez, me relatou um de seus encontros com uma criatura noturna chamada Tsn'fomr. São antropomorfos que durante o dia se assemelham às formigas gigantes comedoras de fumaça e à noite se transfomam em humanos de pele clara e olhos cinzas. Suas línguas são feitas de brasa e, por conta disso, expelem fumaça constatemente. Os Tsn'fomres andam por casas noturnas à procura de romance para que, com um só beijo, causem uma marca em seus objetos de desejo. Estes nunca mais se interessarão por outras pessoas e, com sorte, se tornarão Tsn'fomres, ou por azar, em formigas gigantes comedoras de fumaça.

Chamava-se Raus. Após beijá-lo, o pequeno Chico disse sentir seu corpo arder e seus olhos incréus puderam penetrar por um segundo na escuridão do lugar e ver, através do breu, um espectro vermelho do desejo. Do meio da fumaça, a criatura lhe contou o seguinte:

Era noite na pequena ilha. As três amigas há muito não se viam e por vontade estavam reunidas no quarto de Bia. Tida olhava para seus pés enciumada com a conversa das outras duas. Bia dizia assim:

"... então ele me disse que não podíamos nos ver mais. Fiquei confusa, Ana, porque já faziam três meses e parecia que tudo corria bem. Foi nessa época que Tininha começou a se aproximar de mim, ela me confortava e dizia coisas compreensivas. Mais tarde eu entendi que, então, amava ela."

"Foi a coisa mais estúpida que nós fizemos. Pedro morreu enquanto brincávamos de roleta russa, meu Deus, só então eu percebi o que estavamos fazendo. O corpo dele ainda tava quente, mas os olhos explodiram, a boca aberta, um filete de sangue correndo na minha direção. Fiquei aterrorizada, estupefata, não consegui fugir, chorar, nada. Nunca cheguei a conhecer ele direito."

"Nosso primeiro beijo foi no fliperama, tínhamos 12 anos, ou algo assim. Ele tinha uma língua áspera, sentia como se lixasse meus dentes e depois de um tempo não haveria mais dente algum. Começamos a beber nessa época."

Tida nunca conheceu Pedro, nem lamentava sua morte.

"Naquele dia ele me disse que sentia atração por mim, que devíamos ficar juntos, mas eu disse que não ficaria com ele depois do caso de vocês. Voltamos a beber com o pessoal e de repente ele surgiu com a arma. Não quero pensar que talvez tenha sido tudo minha culpa."

"Imagina, Pedro vivia fazendo brincadeira mórbidas. Lembra dos cachorros?"

"Jorge achou que a arma não tava carregada. Não conseguia parar de tremer depois do estampido. Uma semana depois ainda tava com os olhos embotados."

"Podia ter sido ele."

"Ou eu."

"Onde enterraram o corpo?"

"No continente."

Só então Tida se manifestou.

"Vamos comer?"

domingo

Desilusão do amor que nunca tive

O pequeno Chico odiava àquela cidade assim como às baratas, à cerveja quente, aos mauricinhos abraçados à garotas inacessíveis por quem alimentava o ódio frustrado dos derrotados. Acima de tudo, odiava tornar-se uma pessoa banal, ou melhor, sentir-se banal e ver descortinar-se à frente um futuro previsível. Seu desespero alimentava vermes em suas vísceras, idéias odiosas de subversão e marginalidade.
Esticou os dedos em volta do copo e bebericou com amargor as chaves da cela. Esperava poder tudo em poucos minutos, ansiava o momento da loucura de onde o caos misturava toda memória em algo impreciso e valioso. "Somos os últimos guerreiros de uma batalha perdida, somos a esperança daqueles que morrem felizes no asfalto quente das iniqüidades, nós somos os derradeiros profetas" e jogou por sobre o ombro o último resquício de consciência.

terça-feira

Vitória

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. (Mateus 5:4)

Rodolfo procura em meio à bagunça do seu apartamento a baqueta do show de dias atrás. Levanta cuecas, tênis, meias, chafurda no seu próprio quarto. Por um momento seu coração se esvazia de esperança. Ao sentar-se no chão, seu olhar dirige-se a calça pendurada no cabide dentro do armário onde, saindo do bolso traseiro, ele pode ver o motivo de sua agitação. Com os dedos famintos, agarra-a.

Por um momento, nada parece real. A baqueta, o quarto, o telefone esperando ansioso por alguma ação. “Ligue pra pedir desculpas, ligue pra dizer obrigado, marque um encontro, mas não perca a chance.” – a baqueta parece falar. Guarda-a ao lado do telefone e segue pra cozinha.

Lá, no armário, encontra a garrafa de cachaça comprada no Mercado Público. É uma curtida em butiá, desce como um suco. Rodolfo não precisa passar do segundo martelinho para chegar à conclusão de que essa é a hora. Tampa a garrafa e volta para o quarto. Faz tudo o mais rápido possível para evitar qualquer outro pensamento funesto, concentra-se ao máximo na ação.

“Alô?”

“Vitória? Aqui é o Rodolfo...”

“Rô, tua voz tá diferente. Foi estranha a última noite, que aconteceu contigo?”

“Pois é, to ligando pra pedir desculpa...”

“Ah, sabia que tu tinha te enganado! Onde tu deixou a baqueta?”

“Na verdade, eu quero pedir desculpa porque eu sou um outro Rodolfo, um que tu beijou no bar.”

“Rô, se isso for uma brincadeira...”

“Não, é verdade. E não me chama de Rô, por favor.”

“Que tu quer então?”

“Já disse, pedir desculpa...” – algo passou pela cabeça de Rodolfo. “... e agendar um show com a tua banda, no Garagem. Será que a gente podia se encontrar pra conversar sobre isso?”

“Olha, meu, eu não te conheço, mas eu conheço o dono do Garagem e já tive minhas brigas com ele. Além disso, eu não vou me encontrar contigo, porque isso soa uma baita de uma falcatrua.” – e desligou.

Rodolfo voltou pra cozinha e abriu novamente a garrafa.

quinta-feira

Rodolfo curte um rock

Foi ao te descobrir

Roqueiros também amam

Eu te agarrei e não quis mais te soltar

Uh, ie ie ie!

ROCKET, Rock. Por um rock and roll mais alcoólatra e inconseqüente. São Paulo: Tramavirtual, 2004 (ou 2003).

As luzes do show ainda piscam nos olhos memoriosos de Rodolfo. Perdido no meio da multidão vê as pessoas passarem em pequenos flashes. Na mão, agarra a baqueta conseguida a duras penas. Ameaçou queimar os olhos de um garoto duns 15 anos com o cigarro para tê-la. Foi uma das poucas provas de hombridade da sua vida, pregressa e futura.

Não consegue acreditar na figura da vocalista – é simplesmente perfeita. A pele parece tão macia, a voz tão decidida, a pernas tão firmes; soa inalcançável a essa altura da noite. Queria poder abraçá-la, nunca deixar que ela vá embora, cante pra mim, meu bem. Mas Vitória já deve estar tirando a maquiagem no camarim com um algodão que faz a vida de Rodolfo parecer o pré-primário. “Chorei, chorei, chorei/ até ficar com dó de mim”, e pare com isso, nem é tão ruim assim.

Então ele se dirige ao bar contando moedas, contando lástimas, contando todas as suas covardias pra regurgitar as suas mágoas com a ajuda de mais uma cerveja. Vamos Rodolfo, levante a cabeça, veja só quem está bebendo também. Vitória, a garota dos sonhos, convide-a pra beber contigo, não seja estúpido logo agora.

“Oi?”

“Meu, que merda, tava te procurando!”

Dia de sorte. Vitória pula no pescoço de Rodolfo com um sorriso que logo se desmancha num beijo – um filme romântico, em breve nos cinemas.

“Ah, tu pegou a baqueta, hahahahaha! Tu é muito engraçado, mesmo! Mudei de celular, deixa eu anotar aqui então.”

Óbvio que ele notou. Rodolfo era o cara errado no lugar certo, ou seja lá como os americanos chamariam isso. Bom, não preciso dizer que a coisa toda não durou muito: Vitória como uma boa vocalista de banda não-famosa foi fazer a social e logo encontrou o Rodolfo certo. Não, sem antes, pedir pro Rodolfo errado ligar na quinta.

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E parabéns pro Julio!

Pesadelos Recorrentes

Infância

A primeira vez foi quando dormi naquele sofá antigo lá de casa – já era velho antes de mim. Adormeci assistindo ao programa da Xuxa, estudava à tarde. Sonhei comigo dormindo exatamente no mesmo sofá, quando começaram a sair dos vincos milhares de baratas. Eu me debatia enquanto elas passeavam pelo meu corpo me mordendo e sufocando. Doía, coçava e eu não conseguia sair dali. Acordei sobressaltado.

Terceirão

Deitado na cama à tarde, no quarto da casa que foi vendida, no momento de transe antes do sono finalmente me colocar em torpor. Senti que não podia mexer meu corpo, e o peso das minhas costelas começou a me sufocar. Estava de bruços. O pinscher da família, Quico, entra pela porta, a imagem fica confusa, parece haver uma persistência retiniana que mantém as imagens se fundindo. Sim, os olhos mexem. A cabeça do cachorro começa a balançar de um lado pro outro rapidamente e começa a espumar pela boca. Fico agoniado porque não posso fazer nada e ele vai morrer. Tudo some e eu começo a me mexer novamente.

Faculdade

Durmo só depois de muito navegar na Internet, lá por volta das cinco da manhã. Sozinho no quarto caótico, começo a ouvir vozes – uma risada sinistra. No canto do quarto, vejo uma caixa preta pulsante que começa a inflar e se desdobrar, como abrindo várias vezes. Um demônio negro se forma da poeira que ela solta. Ele quer me estuprar, eu sei. Toda a situação é muito tensa, a risada se intensifica. Acabo chegando à conclusão que um ateu não devia se deixar espantar por isso e acordo com uma risada nervosa no canto da boca.

quarta-feira

O Fosso

Antes do fosso existia o vício da queda. Há controvérsias quanto a isso, mas eu acredito nessa hipótese. O fato é que todas as discussões não prescindem da existência palpável do fosso. É ela quem gera o debate e faz possível a dúvida.

O pequeno Samir é o exemplo da precedência do vício da queda. Antes mesmo de nascer, em meio a escuridão das vísceras de sua mãe, através delas, ele tudo via. Seu pai era um xeique de um desses países distantes do oriente e durante a noite Samir quase podia ouvir das bocas que se mexiam palavras de traição. Nasceu trazendo consigo a trama de uma grande conspiração.

Cresceu sob a mácula da paranóia, sob os olhos desconfiados de seu pai. A aparência de Samir não o ajudava muito, as olheiras profundas, as unhas longas, o cabelo ralo, poucos não concordariam se tratar de uma criança assustadora. A certa altura, cansado das conspirações inexistentes de Samir, seu pai decidiu puni-lo. Era uma noite de estrelas brilhantes quando os olhos que tudo viam se abriram e focaram nos guardas prestes a abrir a porta do seu quarto. Entraram em silêncio e carregaram o garoto calado para o fosso que seria a sua nova morada.

A queda deveria matá-lo. No entanto, ao aproximar-se do chão, Samir sabia da impossibilidade da morte, ele via além do chão, além das almas dos homens, vivia a sua própria ficção. O baque não foi um baque, sim uma carícia da terra que o recebia de volta ao seu seio. Isolado do resto do mundo, longe de tudo, o garoto agora podia vigiar um outro mundo de luz eterna. De lá, riu da morte natural de seu incrédulo pai, riu de sua própria ignorância. Em meio ao eco da sua loucura, o Tempo, o Sono, a Fome, todos o esqueceram.

Por muito tempo até eu o havia esquecido. Ele mesmo talvez não se lembre mais do seu próprio rosto depois de anos observando solas de sapatos, moedas sobre tapetes, baratas nos bueiros, bitucas de cigarro, todas as coisas, inclusive as desaparecidas. Só viu o fim da sua letargia hoje, quando do meio das imbricadas séries de acontecimentos das quais tentou em vão estabelecer alguma relação, encontrou algo em que poderia interferir e voltar a testar seu poderes.

Agarrou-se a uma pedra invisível atolando seus dedos no musgo. Começou a escalar a parede do fosso que nunca viu – a tela por onde assistia o mundo. Levou dias, ao que tudo indica, para que seu fino braço esverdeado pulasse para fora do vaso sanitário onde, há pouco, Rodolfo começara a mijar. A urina cessou aos poucos e empoçou entre os pés do garoto. Samir sorriu e disse:

“Isso não é lá uma bela recepção.”

Rodolfo tentou manter as bolas no lugar.

“Também não é com muita frequência que um monstro-verde-do-espaço vem a mim através do vaso.” – e sorriu meio nervoso.

“De qualquer jeito, eu não subi até aqui pra discutir a freqüência ou a qualidade das suas visitas.”

“E o que tu quer?”

“Sabe a garota, aquela do telefone? Liga pra ela.”

Rodolfo olhou para baixo pensativo. Ainda segurava seu pau. Só então notou que Samir já havia submergido.


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Episódio aleatório.