terça-feira

Vitória

Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. (Mateus 5:4)

Rodolfo procura em meio à bagunça do seu apartamento a baqueta do show de dias atrás. Levanta cuecas, tênis, meias, chafurda no seu próprio quarto. Por um momento seu coração se esvazia de esperança. Ao sentar-se no chão, seu olhar dirige-se a calça pendurada no cabide dentro do armário onde, saindo do bolso traseiro, ele pode ver o motivo de sua agitação. Com os dedos famintos, agarra-a.

Por um momento, nada parece real. A baqueta, o quarto, o telefone esperando ansioso por alguma ação. “Ligue pra pedir desculpas, ligue pra dizer obrigado, marque um encontro, mas não perca a chance.” – a baqueta parece falar. Guarda-a ao lado do telefone e segue pra cozinha.

Lá, no armário, encontra a garrafa de cachaça comprada no Mercado Público. É uma curtida em butiá, desce como um suco. Rodolfo não precisa passar do segundo martelinho para chegar à conclusão de que essa é a hora. Tampa a garrafa e volta para o quarto. Faz tudo o mais rápido possível para evitar qualquer outro pensamento funesto, concentra-se ao máximo na ação.

“Alô?”

“Vitória? Aqui é o Rodolfo...”

“Rô, tua voz tá diferente. Foi estranha a última noite, que aconteceu contigo?”

“Pois é, to ligando pra pedir desculpa...”

“Ah, sabia que tu tinha te enganado! Onde tu deixou a baqueta?”

“Na verdade, eu quero pedir desculpa porque eu sou um outro Rodolfo, um que tu beijou no bar.”

“Rô, se isso for uma brincadeira...”

“Não, é verdade. E não me chama de Rô, por favor.”

“Que tu quer então?”

“Já disse, pedir desculpa...” – algo passou pela cabeça de Rodolfo. “... e agendar um show com a tua banda, no Garagem. Será que a gente podia se encontrar pra conversar sobre isso?”

“Olha, meu, eu não te conheço, mas eu conheço o dono do Garagem e já tive minhas brigas com ele. Além disso, eu não vou me encontrar contigo, porque isso soa uma baita de uma falcatrua.” – e desligou.

Rodolfo voltou pra cozinha e abriu novamente a garrafa.

quinta-feira

Rodolfo curte um rock

Foi ao te descobrir

Roqueiros também amam

Eu te agarrei e não quis mais te soltar

Uh, ie ie ie!

ROCKET, Rock. Por um rock and roll mais alcoólatra e inconseqüente. São Paulo: Tramavirtual, 2004 (ou 2003).

As luzes do show ainda piscam nos olhos memoriosos de Rodolfo. Perdido no meio da multidão vê as pessoas passarem em pequenos flashes. Na mão, agarra a baqueta conseguida a duras penas. Ameaçou queimar os olhos de um garoto duns 15 anos com o cigarro para tê-la. Foi uma das poucas provas de hombridade da sua vida, pregressa e futura.

Não consegue acreditar na figura da vocalista – é simplesmente perfeita. A pele parece tão macia, a voz tão decidida, a pernas tão firmes; soa inalcançável a essa altura da noite. Queria poder abraçá-la, nunca deixar que ela vá embora, cante pra mim, meu bem. Mas Vitória já deve estar tirando a maquiagem no camarim com um algodão que faz a vida de Rodolfo parecer o pré-primário. “Chorei, chorei, chorei/ até ficar com dó de mim”, e pare com isso, nem é tão ruim assim.

Então ele se dirige ao bar contando moedas, contando lástimas, contando todas as suas covardias pra regurgitar as suas mágoas com a ajuda de mais uma cerveja. Vamos Rodolfo, levante a cabeça, veja só quem está bebendo também. Vitória, a garota dos sonhos, convide-a pra beber contigo, não seja estúpido logo agora.

“Oi?”

“Meu, que merda, tava te procurando!”

Dia de sorte. Vitória pula no pescoço de Rodolfo com um sorriso que logo se desmancha num beijo – um filme romântico, em breve nos cinemas.

“Ah, tu pegou a baqueta, hahahahaha! Tu é muito engraçado, mesmo! Mudei de celular, deixa eu anotar aqui então.”

Óbvio que ele notou. Rodolfo era o cara errado no lugar certo, ou seja lá como os americanos chamariam isso. Bom, não preciso dizer que a coisa toda não durou muito: Vitória como uma boa vocalista de banda não-famosa foi fazer a social e logo encontrou o Rodolfo certo. Não, sem antes, pedir pro Rodolfo errado ligar na quinta.

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E parabéns pro Julio!

Pesadelos Recorrentes

Infância

A primeira vez foi quando dormi naquele sofá antigo lá de casa – já era velho antes de mim. Adormeci assistindo ao programa da Xuxa, estudava à tarde. Sonhei comigo dormindo exatamente no mesmo sofá, quando começaram a sair dos vincos milhares de baratas. Eu me debatia enquanto elas passeavam pelo meu corpo me mordendo e sufocando. Doía, coçava e eu não conseguia sair dali. Acordei sobressaltado.

Terceirão

Deitado na cama à tarde, no quarto da casa que foi vendida, no momento de transe antes do sono finalmente me colocar em torpor. Senti que não podia mexer meu corpo, e o peso das minhas costelas começou a me sufocar. Estava de bruços. O pinscher da família, Quico, entra pela porta, a imagem fica confusa, parece haver uma persistência retiniana que mantém as imagens se fundindo. Sim, os olhos mexem. A cabeça do cachorro começa a balançar de um lado pro outro rapidamente e começa a espumar pela boca. Fico agoniado porque não posso fazer nada e ele vai morrer. Tudo some e eu começo a me mexer novamente.

Faculdade

Durmo só depois de muito navegar na Internet, lá por volta das cinco da manhã. Sozinho no quarto caótico, começo a ouvir vozes – uma risada sinistra. No canto do quarto, vejo uma caixa preta pulsante que começa a inflar e se desdobrar, como abrindo várias vezes. Um demônio negro se forma da poeira que ela solta. Ele quer me estuprar, eu sei. Toda a situação é muito tensa, a risada se intensifica. Acabo chegando à conclusão que um ateu não devia se deixar espantar por isso e acordo com uma risada nervosa no canto da boca.

quarta-feira

O Fosso

Antes do fosso existia o vício da queda. Há controvérsias quanto a isso, mas eu acredito nessa hipótese. O fato é que todas as discussões não prescindem da existência palpável do fosso. É ela quem gera o debate e faz possível a dúvida.

O pequeno Samir é o exemplo da precedência do vício da queda. Antes mesmo de nascer, em meio a escuridão das vísceras de sua mãe, através delas, ele tudo via. Seu pai era um xeique de um desses países distantes do oriente e durante a noite Samir quase podia ouvir das bocas que se mexiam palavras de traição. Nasceu trazendo consigo a trama de uma grande conspiração.

Cresceu sob a mácula da paranóia, sob os olhos desconfiados de seu pai. A aparência de Samir não o ajudava muito, as olheiras profundas, as unhas longas, o cabelo ralo, poucos não concordariam se tratar de uma criança assustadora. A certa altura, cansado das conspirações inexistentes de Samir, seu pai decidiu puni-lo. Era uma noite de estrelas brilhantes quando os olhos que tudo viam se abriram e focaram nos guardas prestes a abrir a porta do seu quarto. Entraram em silêncio e carregaram o garoto calado para o fosso que seria a sua nova morada.

A queda deveria matá-lo. No entanto, ao aproximar-se do chão, Samir sabia da impossibilidade da morte, ele via além do chão, além das almas dos homens, vivia a sua própria ficção. O baque não foi um baque, sim uma carícia da terra que o recebia de volta ao seu seio. Isolado do resto do mundo, longe de tudo, o garoto agora podia vigiar um outro mundo de luz eterna. De lá, riu da morte natural de seu incrédulo pai, riu de sua própria ignorância. Em meio ao eco da sua loucura, o Tempo, o Sono, a Fome, todos o esqueceram.

Por muito tempo até eu o havia esquecido. Ele mesmo talvez não se lembre mais do seu próprio rosto depois de anos observando solas de sapatos, moedas sobre tapetes, baratas nos bueiros, bitucas de cigarro, todas as coisas, inclusive as desaparecidas. Só viu o fim da sua letargia hoje, quando do meio das imbricadas séries de acontecimentos das quais tentou em vão estabelecer alguma relação, encontrou algo em que poderia interferir e voltar a testar seu poderes.

Agarrou-se a uma pedra invisível atolando seus dedos no musgo. Começou a escalar a parede do fosso que nunca viu – a tela por onde assistia o mundo. Levou dias, ao que tudo indica, para que seu fino braço esverdeado pulasse para fora do vaso sanitário onde, há pouco, Rodolfo começara a mijar. A urina cessou aos poucos e empoçou entre os pés do garoto. Samir sorriu e disse:

“Isso não é lá uma bela recepção.”

Rodolfo tentou manter as bolas no lugar.

“Também não é com muita frequência que um monstro-verde-do-espaço vem a mim através do vaso.” – e sorriu meio nervoso.

“De qualquer jeito, eu não subi até aqui pra discutir a freqüência ou a qualidade das suas visitas.”

“E o que tu quer?”

“Sabe a garota, aquela do telefone? Liga pra ela.”

Rodolfo olhou para baixo pensativo. Ainda segurava seu pau. Só então notou que Samir já havia submergido.


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Episódio aleatório.