quarta-feira

Críticos

"Líquido seminal que pesa nas minhas bolas!? Como tu tem coragem de fazer poesia com essa merda?"

"Pô, André! Tu nunca leu Bukowski? A geração beatnik já meteu uma bica nesses teus padrões estéticos!"

"Cara, a geração beatnik é outra coisa. Eles tavam chutando o pau da barraca. Mas tu botou essa merda aqui no meio só pra satisfazer teu narcisismo mórbido, essa brincadeirinha infantil pode até ser engraçada..."

"Durval, mais uma!"

"Porra, não me interrompe! Onde eu parei?"

"Não sei, parei de escutar em algo como 'essa merda'."

"Peraí... Ah! Tudo bem, eu entendi que tu tentou expressar o teu desejo carnal, mas isso aqui não tem profundidade. Parece mais uma brincadeirinha, uma infantilidade pra chocar as pessoas. Só que as pessoas não se chocam mais com essas coisas, tá todo mundo anestesiado e o 'líquido seminal' das tuas bolas... "

"Valeu, Durval! Toma aqui e mantém essa mesa abastecida."

"Tu realmente não vai prestar atenção!?"

"Relaxa, cara. O problema é que tu fala, fala, mas eu acho que é birra por causa da Amanda. Admite que gostou e vamos tomar essa cerveja."

"Mas eu realmente não gostei!"

"Tudo bem, eu te perdôo."

Giaeli e Sisera


Artemisia Gentileschi (1593 - 1653) aos 17 anos foi estuprada por seu tutor, Agostino Tassi. Essa não coresponte exatamente à atitude de um tutor que preste. Este era particularmente cruel e inescrupuloso. Durante as investigações, descobriu-se que ele planejava matar sua mulher, cometeu incesto com sua cunhada e ainda planejava roubar quadros de seu colega Orazio Gentileschi, pai de Artemisia.

Uns oito anos depois, ela pintou "Giaeli e Sisara", seguindo a temática de "Judith e Holofernes", primo mais famoso do primeiro. Contra a habitual doçura associada às mulheres, estas partiram pro ataque e mataram seus desafetos com a serenidade de um serial-killer. No caso de Sisara, enquanto o descuidado Giaeli dormia.

Apesar disso, Gentileschi não pinta vilãs, como a Dalila de Sansão. Quero dizer, elas poderiam ser consideradas vilãs, mas essa não é a forma como estão representadas. Sisara fecha os olhos como a justiça vendada pronta para descer sua espada sobre os infratores. Gentileschi enfia um prego na cabeça de Tassi, Judith decapita Holofernes e carrega a cabeça dele num cesto com a ajuda de sua criada. Os quadros transbordam vingança contra homens colocados em posição inferior, subjugados, indefesos. Estes não morrem sozinhos, mas com as ilusões de uma garota de 17 anos, sob a influência macabra dos sentimentos mais viscerais da autora. Por isso são quadros que me confundem, ofendem e fascinam; politicamente incorretos, mas arrebatadores.

Criaturas Noturnas

O pequeno Chico, certa vez, me relatou um de seus encontros com uma criatura noturna chamada Tsn'fomr. São antropomorfos que durante o dia se assemelham às formigas gigantes comedoras de fumaça e à noite se transfomam em humanos de pele clara e olhos cinzas. Suas línguas são feitas de brasa e, por conta disso, expelem fumaça constatemente. Os Tsn'fomres andam por casas noturnas à procura de romance para que, com um só beijo, causem uma marca em seus objetos de desejo. Estes nunca mais se interessarão por outras pessoas e, com sorte, se tornarão Tsn'fomres, ou por azar, em formigas gigantes comedoras de fumaça.

Chamava-se Raus. Após beijá-lo, o pequeno Chico disse sentir seu corpo arder e seus olhos incréus puderam penetrar por um segundo na escuridão do lugar e ver, através do breu, um espectro vermelho do desejo. Do meio da fumaça, a criatura lhe contou o seguinte:

Era noite na pequena ilha. As três amigas há muito não se viam e por vontade estavam reunidas no quarto de Bia. Tida olhava para seus pés enciumada com a conversa das outras duas. Bia dizia assim:

"... então ele me disse que não podíamos nos ver mais. Fiquei confusa, Ana, porque já faziam três meses e parecia que tudo corria bem. Foi nessa época que Tininha começou a se aproximar de mim, ela me confortava e dizia coisas compreensivas. Mais tarde eu entendi que, então, amava ela."

"Foi a coisa mais estúpida que nós fizemos. Pedro morreu enquanto brincávamos de roleta russa, meu Deus, só então eu percebi o que estavamos fazendo. O corpo dele ainda tava quente, mas os olhos explodiram, a boca aberta, um filete de sangue correndo na minha direção. Fiquei aterrorizada, estupefata, não consegui fugir, chorar, nada. Nunca cheguei a conhecer ele direito."

"Nosso primeiro beijo foi no fliperama, tínhamos 12 anos, ou algo assim. Ele tinha uma língua áspera, sentia como se lixasse meus dentes e depois de um tempo não haveria mais dente algum. Começamos a beber nessa época."

Tida nunca conheceu Pedro, nem lamentava sua morte.

"Naquele dia ele me disse que sentia atração por mim, que devíamos ficar juntos, mas eu disse que não ficaria com ele depois do caso de vocês. Voltamos a beber com o pessoal e de repente ele surgiu com a arma. Não quero pensar que talvez tenha sido tudo minha culpa."

"Imagina, Pedro vivia fazendo brincadeira mórbidas. Lembra dos cachorros?"

"Jorge achou que a arma não tava carregada. Não conseguia parar de tremer depois do estampido. Uma semana depois ainda tava com os olhos embotados."

"Podia ter sido ele."

"Ou eu."

"Onde enterraram o corpo?"

"No continente."

Só então Tida se manifestou.

"Vamos comer?"

domingo

Desilusão do amor que nunca tive

O pequeno Chico odiava àquela cidade assim como às baratas, à cerveja quente, aos mauricinhos abraçados à garotas inacessíveis por quem alimentava o ódio frustrado dos derrotados. Acima de tudo, odiava tornar-se uma pessoa banal, ou melhor, sentir-se banal e ver descortinar-se à frente um futuro previsível. Seu desespero alimentava vermes em suas vísceras, idéias odiosas de subversão e marginalidade.
Esticou os dedos em volta do copo e bebericou com amargor as chaves da cela. Esperava poder tudo em poucos minutos, ansiava o momento da loucura de onde o caos misturava toda memória em algo impreciso e valioso. "Somos os últimos guerreiros de uma batalha perdida, somos a esperança daqueles que morrem felizes no asfalto quente das iniqüidades, nós somos os derradeiros profetas" e jogou por sobre o ombro o último resquício de consciência.