quarta-feira

The redlight indicates doors are secured

A duna é como o mar... mas que merda é essa? Cravo os dedos no paredão de areia à procura de algum apoio, e vou me agarrando precariamente nesse algo que se desmancha na minha mão sem poder ver através da escuridão e dos meus seis graus de miopia. Cadê meus óculos, porra!? Subir parece tanto com descer, eu não tenho bem certeza, se é que... há algo mais escuro pra cima e... se é que...

Minhas pernas ficam pesadas como duas tias gordas que eu insisto em puxar e arrastar a revelia do quanto meu pulmão possa curvar-se e queimar. E não tem problema, nada pode me incomodar agora que eu lembrei: amanhã é sábado, não trabalho, e se trabalhasse não poderia ir porque não há saída, sabe, é tudo essa massa, tudo esse... como um grande vulto que se percebe mas não se reconhece. Recosto-me e deslizo lentamente pra baixo. Grandes manchas de luz poluem o céu.

Não Gustavo, não adianta buscar sem saber o quê, e sem caminho você vai continuar deslizando pra baixo e a sua auto-piedade não vai virar um foguete e te levar pra cima porque você sabe que tem a gravidade e talvez nem seja isso mas auto-piedade não, não vai adiantar beber e cravar teus olhos injetados no rosto apagado de alguém quando teus olhos, meu bem, teus olhos mal enxergam. E já era hora de você notar isso, mas agora é noite e você vai ficando velho e macerado e cada vez menos sóbrio a ponto de qualquer dia não poder mais encontrar uma saída e aí a saída vai ser continuar na mesma, por mais que de uma hora pra outra isso deixe de fazer qualquer sentido.

"Meu maior medo é esquecer o que me levou a trabalhar. Depois de um tempo teus planos desaparecem porque tu talvez tenha te tornado outra pessoa e, tudo bem, de uma forma ou de outra tu sempre acaba te tornando outra pessoa, mas há algo do que eu sou hoje nos meus sonhos e parece que perdê-los é me perder, não?"

Gustavo olha pra mesa. O bar tá cheio.

"De onde tu tirou isso?" - a queridinha.

"Bem, sei lá. Só tenho a impressão de que mal começamos e já tá tudo errado."

"É risco de se começar qualquer coisa. E que importam teus sonhos? Eles são só um pedaço da noite, e a noite só um pedaço do dia. Pare de pensar sobre isso."

E por mais que não fizesse sentido, ele acabou parando mesmo.

domingo

Eterno retorno

Há ruas demais e por todo lado gente o bastante, e há tantas escolhas no cardápio que de tanto escolher Leila escolhe o mesmo, sempre. Porque saber o gosto das coisas é seguro e porque segurança dá uma sensação... confortável, vocês devem saber. Mas talvez lá pro fundo do cardápio, escrito numa letra pequena, ou em mágicos arabescos que precisam ser decifrados em um processo moroso e desafiador, esteja o prato no qual todos os sabores sejam contemplados e cada garfada esconda um novo e delicioso segredo. É provável que o maître engasgue ao receber do garçom a notícia do pedido, e num pequeno espaço de tempo apareça com desculpas, sabe como é, ninguém pede isso, não temos todos os ingredientes nesse momento, eu lhe sugeriria o prato do dia, está maravilhoso. E a partir daí ela já sabe que é exatamente esse prato que procurava, e como vocês não podem fazer se está no cardápio, eu quero meu prato agora ou vou falar mal desse bolicho pra todo mundo, pra depois de uma longa discussão ser expulsa do lugar.

Não, ninguém pode saber quando chegou ao prato certo, logo o jeito é continuar procurando.

Agora, agorinha, o que Leila busca repicando o dedo sobre o cardápio só pode ser me irritar, porque já escolheu faz muito tempo, e sabe o que eu sempre como ou pelo menos tem uma idéia do meu gosto. Apoio um cotovelo na mesa e espero olhando pra fora, pela vidraça, onde senhoras empurram carrinhos de bebê, catadores empurram seus carrinhos de papelão, e um mendigo escarra na sarjeta. A fome arrefece, uma acidez invade meu estômago e eu penso logo num copo de leite com algumas bolachas. Leila levanta sua unha limpa para chamar o garçom, que demora mas vem, meio afoito, puxa um caderninho e olha ansioso.

“Duas cocas, por favor.” – ela diz.

“Já pede a comida.” – reclamo.

“Não escolhi ainda.” – balança a cabeça.

Porra, agora ele já foi.

“Leila, meu bem, posso ver o cardápio?”

“Que tal comer em um outro lugar? Agora senti vontade de comer um lanche.”

“Conheço um lugar...”

“Garçom! Cancela a coca.”

“... que fica aqui perto. Podemos comer um xis lá.”

“Prefiro um pastel.”

“Então escolha de uma vez, que tô ficando com fome.”

quinta-feira

O Encontro

Duas semanas separam Astolfo do último encontro - conseqüentemente voltou a fumar, e do vermelho (sintam a gravidade). Desce a rua trotando, pisoteando insetos que não vê, estalando os dedos. Acalme-se, não adianta ficar tão nervoso, vai ser legal, descanse as mãos, descanse os pés, não precisa ficar desse jeito. Afinal, vocês já fizeram isso milhares de vezes, já se viram milhares de vezes, e não é a primeira vez que Leila some. Diminua o passo, veja o restaurante, as vitrines, as pessoas, contenha-se, ninguém tem nada a ver com isso.

E ele diminui o passo e o coração, diminui bem apertado; fecha os olhos, comprime-os, pra não desistir. Ao entrar, atinge a porta com o ombro, solta um “merda”. Pronto, todos estão olhando, inclusive Leila. Pelo menos, ela está aqui, mas está diferente. Não usa batom ou tinta nos dedos, não usa óculos escuros, não fuma. Seria difícil reconhecer se não fosse tão natural, se não carregasse algo na expressão tão dela, um algo que não conseguiria esconder nem sob uma máscara de solda. Tofo senta-se.

“Olá, benzinho.” – ela diz naturalmente.

“Por que não tu responde as minhas mensagens? Onde...”

“Tu tá com uma aparência deplorável” – vira-se. “Um cinzeiro, por favor!”

“Eu sinto como se tivesse perdido essas duas últimas semanas girando em torno de algo fútil, porque você não está nem aí, mal sente minha falta. E mesmo assim, não pude deixar de vir aqui. O que tu quer Leila? O que tu tá fazendo comigo? Quero dizer, tu podia sair procurando outra pessoa, afinal, eu vou sobreviver, isso vai passar, então parece que é um capricho, sabe? Parece que tu faz...”

"Entendo, mas tu não vai comer?”

Ele bufa, passa a mão nos cabelos nervoso, então olha pra ela meio que desistindo.

“Que tipo de comida vende nessa birosca?”

“Benzinho, só me dê um cigarro e eu escolho por ti.” – e sorri jocosa.

Astolfo puxa o maço, solta um piparote no fundo e estica para Leila. De repente, não está mais nervoso, ou puto; não, ele nunca esteve puto, pois entendeu o que veio fazer ali. Então no segundo seguinte, a mesa parece ter sido colocada entre os dois de propósito, assim como as cadeiras foram escolhidas por alguém, e os pratos que lavam na pia sabe estarem limpos dentro da medida necessária, pois cada pequeno poro da esponja absorve seu quinhão de água e sabão e tudo é tão exato quanto os decibéis do som de seu isqueiro que se fecha exatamente agora.

Leila traga seu cigarro ainda com os olhos sobre as mãos de Tofo e só libera a fumaça quando tudo volta ao normal.

quarta-feira

Produção: diálogos.

Chego, arfando, para uma senhora catadora de papelão:

"Eu... preciso falar com a senhora. Ai... arf... quero alugar sua carroça."

"Ah, meu querido, eu não posso. Preciso deixar a carga ali no depósito e depois ir ver meu filho na UTI. Tu já deve tá sabendo."

"Não, não sei."

"Ele foi baleado no Morro do (... não lembro), deu na TV. Tu não assiste jornal?"

"É que eu... não assisto muito TV. Posso ir com a senhora?"

"Pode sim."

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Ela me introduz a um grupo que repousava a sombra de algumas árvores. Breve negociação, estou voltando com um - agora sei - carrinho de papelão, pois quem puxa carroça é cavalo (as delicadezas da língua). Pé na estrada, acompanho o catador que me alugou até o set.

"Então, tu sabe que no set tem uma hierarquia, cada um tem a sua função. Eu por exemplo tô na produção, que é o pessoal que arranja as coisas."

"Ah, sabe como chama isso lá no morro?"

"Não. Como?"

"São os correria, os pessoal que arranja as coisa."

"Pois é, eu sou assistente de correria."

E aquele sol de rachar.