domingo

Tribunal

Quando abri a porta, todo o ambiente vibrou escuridão. Fui eu quem a trouxe aqui, agora é tarde. Podia ter deixado em casa, nem precisava ter convidado, não queria. Mas tem certas coisas que a gente não pode evitar e todo o papo de compromisso e tal, então eu olho pra ela e sorrio porque é sempre assim, me faz bem. Querida, sente aqui, vou buscar uma cerveja, que morena linda, oitudobem, freezer, cerveja, dois copos. Eu te vi olhando pra ela. Bobagem, Nati, bebe ó.

As garrafas caem em cascata da mesa, quebrando-se aos pares. Você bebeu demais, vou jogar truco, não, é truco mesmo, esquece a morena, truco com o Josias, ali na mesa, ali ó. Ela levanta indignada, caralho, ó o Josias ali, tá vem comigo então, vem por favor, não faz assim, eu sei, aquela nem conta, você também já fez, pára com isso, não me bate, pára, a gente conversa outra hora pode ser? Quero agora, agora não que vai começar o jogo, já vou Josias, me larga, entendi, não vou nem olhar, tá, tudo bem, beijo.

Sento do lado do Josias. Colé? Então faz a mão que eu vou lá no banheiro, não, na boa, já volto, se liga meu, já volto, pega outra enquanto eu vou lá, não tô bem, pega outra que depois eu explico. A morena olha, penso na maldade, e aí benzinho, olho pra trás, por onde anda a Nati? Não conseguiria sorrir agora, mas você é linda, chega pertinho, concentra na cerveja Josias, vamos ali, no feminino?, pode ser. A porta abre gemendo gostoso.

Ela se aproxima, você beija bem, minhas mãos descem, já te disse que tu é linda, sobem, linda mesmo, jogo contra a parede, descem, tava olhando pra ti a festa toda, sobem, esquece ela, somos só nós dois agora, bem encaixado agora, isso, ah, safadinha, isso, continua, não pára, por favor, aimeudeus, isso, mexe, mais, mais rápido, peraí, peraí, aaah! Acho que dá tempo pra mais uma.

Saio do banheiro me apoiando na parede, lambendo os beiços, e logo a Nati estala na minha cara. Que eu fiz? Como assim, é o feminino? Ah, entrei errado, então! Não foi tu que disse que eu tava bêbado, calma, só fui mijar, a morena sai, agora fudeu. Ela pára de falar. Só olha. Querida, pensa bem, Nati, fala comigo, volta aqui, volta aqui, eu te amo, meu bem, volta. Ela atravessa a porta, que fecha numa última sentença.


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Logo, logo, ela me responde:
http://thephant21.blogspot.com/

segunda-feira

Promiscuidade

"Não."

"Por quê?"

"Ué, não consigo entender essas coisas. Eu peido em público como todo mundo, tiro meleca sem o menor constrangimento, isso tudo. Sou absolutamente normal. Por que tu ia querer ficar comigo?"

"É outra, certo?"

"Certo."

"Quem é?"

"Pra que tu quer saber?"

"Fala!"

"Não vou falar."

"Tudo bem, eu descubro. Essa vadia vai se ver comigo!"

"Tá maluca, porra!?"

"Ela não tem o direito."

"Caralho! Que saco!"

"Tu faz de propósito, né?"

"Quer dizer que eu não posso namorar ninguém?"

"Quero dizer que tu pode me namorar."

"Pára com esse papinho, vai. Não tem ninguém, eu só não quero."

"Vai te fuder."

E ele sentiu que nem só de sinceridade é feita a nobreza.

domingo

Fligth A147

Continuando a série Leila e Astolfo, o não-casal. Depois de um ano, interrompido por alguns encontros esparsos, retomo o relacionamento do dois sem promessa de frequência ou continuidade. Além disso, algo mudou no estilo, não sei se vão notar, mas me parece diferente escrever hoje como era ontem. De qualquer forma, ficam os links para que se possa averiguar:

http://opessimo.blogspot.com/2005/09/o-casal.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/astolfo.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/solido.html
http://opessimo.blogspot.com/2005/10/nasce-joo-roberto.html
http://opessimo.blogspot.com/2006/12/astolfo.html

Esse era um projeto contido em algo maior, um livro em que eu contaria em episódios não-lineares as experiências de casais estranhos. É uma pena que grande parte não esteja publicada no blog para a comparação dos bravos interessados. De qualquer forma, acho que já dá pra ter um panorama superficial. Vamos ao conto.


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So I was wrong.
What could I do?
I knew all along.

The Gossip – Coal to Diamond


"Welcome aboard to flight A147 from Porto Alegre to..."

Leila continua maquinalmente o texto de sempre sobre o assunto de sempre. Sua cabeça, em contrapartida, perscruta outros pensamentos. Todos eles têm como cenário a figura desolada de Astolfo no retrovisor do carro. O garoto mal se mexia e, por Deus, desde quando ela passou a se importar? Mas não haviam Astolfos nas nuvens ou nas asas do avião para contrária-la, não haviam passageiros com ânsia ou com o cinto desafivelado para distraí-la.

Esquentou o café na cafeteira, arrumou o lanche no carrinho, o que mais podia fazer? Era solitário encontrar as aeromoças conversando sobre pilotos e passageiros enquanto tudo que lhe vinha a cabeça era a imagem do retrovisor. Já não era mais a dona das rédeas, a situação começava a ficar insustentável. Devia ter dado uma chance pro garoto, um telefone já seria de bom tamanho, mas não, era melhor não se envolver. O problema é que "o melhor" nem sempre é.

Caminhava num corredor em direção a Buenos Aires. Cada passo significava milhas aéreas que Leila não poderia retirar mais tarde pois elas se transformariam em "tarde demais". Divisou a comida entre crianças, velhas gordas e os habituais - afinal, eram todos habituais de qualquer forma. Ao fim, mastigava um amendoim salgado e bebericava café no seu assento exíguo. O piloto já passava as velhas cantadas quando terminou seu café e sentiu o desejo irreprimível de fumar. Acendeu escondida um cigarro imaginário, mas não se pode simular tudo o que faz falta.

O avião então pousou sutil como a imensa massa de metal que é. Algo rangeu, uma outra coisa tremeu e no fim tudo parou. A vontade da pequena massa de carne enclausurada no peito de Leila foi análoga, ansiava pelo torpor da noite que dormiria em breve. Já a xícara de café atingira o objetivo deitada inapropriadamente no chão. Depois da reprimenda, Leila chorou algo como desgosto e arrependimento, foi para seu quarto, guardou sua parca bagagem, deitou na cama, esperou o sono chegar olhando para o teto alienígena de suas acomodações e caiu num sono permeado da recente realidade.