segunda-feira

Espera

O garoto se aproxima de Antônio.

"Com licença."

"Tá ocupado."

Se olham. Há algo de errado em guardar o lugar no ônibus? Parece que sim, todo mundo sempre fica meio surpreso. Aparentemente, não se marcam muitos encontros em ônibus ultimamente – caso um dia se tenham marcado. O senhor, no entanto, não parece abalado pelo estranhamento do rapaz e fixa os olhos nele à espera de alguma reação. Mas não há nada pelo que discutir exceto o algo inusitado da situação.

E por mais estranho ou extraordinário que possa parecer, Antônio faz isso com freqüência. Uma vez no mês, pra ser exato; um ritual de conjuração que ele mesmo inventou. No dia 23 de agosto de 1983 conheceu Cida nessa linha e, por qualquer motivo dos muitos, se apaixonou. Encontraram-se algumas vezes, chegaram a namorar. Um dia, sem explicação nenhuma, Cida desapareceu da vida de Antônio com um pedaço daquilo que ele sentia quase físico, material. Atrás dela, ou dessa coisa que ninguém sabe direito o quê, passou a freqüentar a linha 142 todo dia 23 às cinco. Mas isso não foi logo depois.

Antes comprou um cachorro, assinou a TV a cabo e ganhou uma promoção, dentre essas outras coisas que acontecem quando se vai envelhecendo. Casou umas duas vezes e se separou. Teve um filho, como é de se imaginar. O moleque deve estar terminando a faculdade agora. Não o perdoa por ter abandonado a mãe atrás de outra mulher, mas Antônio sabe que um dia ele vai entender. Por mais cruel que se possa imaginar alguém, no fim, as pessoas acabam nem sendo tão más – é só um pouco de ressentimento estragando as coisas. Já com a segunda mulher não quis ter um filho. Havia algo de errado em conceber uma pessoa com alguém parecido assim com Cida. Era como uma traição perversa. Ao mesmo tempo via através do rosto dessa segunda uma projeção de desejos que não conseguia reprimir, mas como seu olhar a atravessava para longe, ela se foi. É triste magoar alguém assim e, ao mesmo tempo, terrivelmente mundano.

Depois disso, não sei direito. Ver o simulacro virar-lhe as costas foi como uma mensagem, algo lhe dizia que correr atrás dela era como disparar sempre o mesmo gatilho de eventos culminando no seu abandono. Tudo ficou turvo e absolutamente aborrecido. Quase demitiu-se, quis se matar. Estava preso entre sua vontade e as inexorabilidades que inventou. E foi pensando, conversou com os amigos – aqueles preocupados o suficiente para lhe perguntar sobre o problema –, até chegar à conclusão de que as coisas estavam erradas não por conta de Cida, mas da sua ausência.

Sabe-se lá quando a idéia toda fez sentido, e como faz tempo, já não se poderia lembrar. Tudo o que faz é descer no último ponto, comprar um sorvete e ir ao cinema, como faria se a tivesse encontrado. Depois da sessão, já com estrelas contaminando o céu, Antônio joga o canhoto no lixo e entra no ônibus. Finge pra si mesmo não importar.

quinta-feira

Dixit Dominus

"Julgará entre os gentios; tudo encherá de corpos mortos; ferirá os cabeças de muitos países."

Salmo 110


Esticou os dedos da mão com tal força que estalaram. Alongou um pouco o pescoço, deu dois pulinhos. Jonas, ao chão, vertia o sangue das gengivas sobre o meio fio. Davi cuspiu:

"Levanta."

Trocaram socos. A mesma confusão que sempre é: punhos zunindo, baques abafados, choques, arquejos, grunhidos e palavrões. Jonas acertou o queixo de Davi que, não tão macho, cambaleou pra trás. No segundo seguinte, tatuava a sola na cara dele. Estava por cima agora.

"Levanta!"

As roupas enfunavam nas janelas dos prédios. Davi sentia gosto de ferrugem e o maxilar latejando. Viu o sol inflar por trás de Jonas e aquecê-lo. Levantou ainda tonto.

"Filho da puta."

Agarrou um soco, espalmou a outra mão atrás do pescoço de Jonas e enfiou o joelho no nariz dele, rompendo a cartilagem e várias veias que viriam a formar um hematoma horrendo. Momentos antes de desmaiar, Jonas viu padrões venosos mesclarem-se ao fundo avermelhado de suas pálpebras. Uma senhora apavorada atravessou a rua. Davi limpou o sangue do nariz, virou as costas e atravessou o portão.


...

Como o tiro que segue o tilintar de esporas e o silêncio do deserto cortado pelo repicar das notas de um piano, é possível reconhecer os salpicos coagulados da camisa branca de Davi, a agressividade como abre a geladeira, o espocar da tampa do jarro de água, e perceber uma certa articulação nas coisas. Tudo que o garoto fez foi catar o celular do chão e sair correndo.

"Alô? Sarmento? 155 aqui na frente de casa. Vem recolher o meliante."

"Porra, Davi, tu tá fora cara! Entendeu?"

"Só manda uma viatura, vai."

"Tá, mas vê se pára com isso."

"Manda um beijo pra Clara. Tchau."

"Tchau."

Vai até o armário e pega a algema.

...

Acende um cigarro. Está ficando velho rápido demais. Foi empurrado pra aposentadoria por um acidente de trabalho, uma falha no seu revólver arrancou o dedão dois anos atrás. É difícil cortar as unhas agora. Sente falta de uma arma na cintura, uma tonfa que seja. Teria derrubado Jonas no primeiro golpe se tivesse uma. Talvez devesse arranjar um trabalho comunitário, ou voltar a freqüentar a academia de boxe. Muito tempo livre. Jonas acorda.

"Vacilão."

"Não enche."

"Tu tá fumando, não tá?"

"Nada a ver."

"Pra que era então?"

"Pra mim."

"Seu idiota."

"Qual é?"

Davi abre a algema.

"Some da minha frente antes que a viatura chegue."

"Valeu."

"Seu idiota."

Eles iam meter um 12 no garoto, de qualquer jeito.

...

"Ué, cadê o meliante?"

"Era o Jonas. Fugiu enquanto eu ligava."

"Admite, tu só ligou porque tá com saudade."

"Entra, vamos tomar uma cerveja."

"O que era?"

"Um celular."

"Pff... vacilão."

Um cachorro latiu longe e, então, já amainava o calor da tarde.

quarta-feira

O incrível caso de Seu Adorfo

Parece, aconteceu no oeste catarinense. Foi uma dessas coisas que logo todo mundo fica sabendo. Dizem que quando levaram Seu Adorfo pra cidade com uma faca enfiada na testa, ele já tava desacreditado, mas pra surpresa de todos sobreviveu. Trouxeram o velho de volta com a lâmina ainda ali, inválido. Se tirassem, morria. Quem primeiro reparou foi a enfermeira. Havia uma placidez não só no rosto de Seu Adorfo como em todo o ambiente, podia-se morrer em paz na presença do homem, tal tranqüilidade. A mulher, que formou-se na capital, notou também que todas suas dores aplacavam-se ao entrar no quarto do moribundo e em seguida teve uma idéia. Trouxe à presença do homem sua amiga, Amélia, que sendo secretária sofria de dores terríveis nos pulsos. Fez com que ela ficasse por um tempo na presença dele. Curou-se. Isso é o que dizem.

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Seu Honório benzeu a faca que usava pra degolar carneiros e matou uns três homens com ela durante o Contestado. Apostavam quem sobreviveria por mais tempo enquanto os diabos estrebuchavam no chão. Antes de morrer, já com o rosto macerado, deixou a arma pra seu filho, e lhe falou: "Não há quem possa lhe ferir, Jorge, enquanto tu empunhar essa faca, porque quem benzeu ela foi José Maria, e se eu hoje morro é porque ela te pertence", e lhe deram um último cigarro. Jorjão tornou-se violento e temido, e toda vez que seu Onofre da Bodega o via atravessar o batente da porta, escondia a cachaça e servia uns amendoins torrados. Não se falava de política.

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A pequena Inez nasceu cega. Não chegou a ver sequer o rosto de seus pais. Todos sempre acharam isso muito triste. Dona Maricota, que nascera no Paraná, era benzedeira e desde cedo a criança foi levada a sua presença para que por meio de infusões se tratasse de sua cegueira. Não pagavam nada, não precisava. A senhora sempre lhes dissera que não tinha certeza se seus poderes poderiam realizar tal façanha. Caso conseguisse, seria um sucesso de tal forma fabuloso que sua própria satisfação era pagamento. A enfermeira ficou sabendo do caso por Amélia, quando da cura de suas dores, pois Inez era sobrinha de uma conhecida do trabalho. Condoída, decidiu que valia a pena tentar. Convenceu a família e levou a garota à presença do velho. Diz-se que a menina foi aos poucos recebendo a visão, como de uma névoa que subitamente se dissipa de dentro dos olhos. Chorou. O caso saiu num jornal.

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Na terceira vez que veio a público, o caso de Seu Adorfo foi transmitido em rede nacional. A ele, alegavam a cura de dezenas de pessoas; as enfermidades iam de dores nas costas a doenças mortais. Corria a boca pequena que se cobrava dos que apareciam lá por ajuda, mas durante a reportagem a enfermeira desmentiu o boato. O fato é que os poderes de Seu Adorfo já eram largamente conhecidos nas localidades próximas, e se considerava a canonização do velho. Imprimiram-se santinhos com a foto do homem estampada, e diz que um desses colocado sobre a fronte gelada de Genivaldo, canceroso das proximidades, alcoólatra, vilão, o salvara. Logo depois, mandou rezar uma missa, emendou-se, e hoje trabalha para igreja e promove novenas em nome de Seu Adorfo. Ouvi que a enfermeira ficou muito feliz ao saber do caso.

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Findava a tarde e os pássaros gorjeavam no entorno da Bodega. Onofre servia a saideira ao velho quando avistou, virando a esquina, Jorjão aproximar-se já trocando os pés. Era conhecido que nos idos tempos de mocidade, Seu Adorfo, por conta de uma dívida de aposta, surrara seu Honório na frente da rinha. Eram inimigos desde então. Havia ainda o boato de que a briga ocorrera, não por dinheiro, mas pela paixão que ambos dispensavam a Cidinha, que por nenhum se interessava. Jorjão meneou a cabeça num cumprimento agressivo – que o Seu Adorfo sequer respondeu – e pediu uma branquinha. Virou.

"Seu pai, onde quer que esteja, deve se envergonhar do traste que criou."

"Ora, deixa disso."- Onofre disse em voz baixa, serviu a cachaça e afastou-se do balcão.

Jorjão beliscava o amendoim. O velho bebia sua cerveja com calma. Ao terminar, levantou, pôs o chapéu, aproximou-se do bêbado e cochichou algo em seu ouvido. Houve um estalo, um copo quebrou-se no chão, um estampido, e depois os dois sangravam caídos em frente a seu Onofre da Bodega, cuja garrucha tremia em sua mão. Atirara tarde demais, Jorjão já havia enterrado 7 centímetros de lâmina dentro crânio de seu inimigo.

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Uma junta médica foi convocada a estudar o caso de Seu Adorfo. Espantaram-se, analisaram, e decidiram retirar a faca do crânio. Houve um burburinho pela localidade, as opiniões se dividiam. Por um lado, havia quem dissesse que era a Providência Divina a responsável pela desgraça do moribundo, e que não se deveria ir contra a vontade do Todo Poderoso; por outro, era de uma crueldade desmedida manter o velho naquele estado. Chamaram a polícia, retiraram o homem da casa e levaram pro hospital. Protestos de ambos os lados, abaixo-assinados, correria, ouviu-se até tiros. A enfermeira nada declarou. Às onze horas da noite daquele dia, os médicos terminaram a cirurgia. Não houve jeito, quando retiraram a faca, Seu Adorfo prontamente morreu.


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Mandei pra Off Flip. Não ganhei nada.

domingo

... e o gosto de alcatrão na boca

Ah, Lalage! while life is ours,
Hoard not thy beauty rose and white,
But pluck the pretty, fleeting flowers
That deck our little path of light:
For all too soon we twain shall tread
The bitter pastures of the dead:
Estranged, sad spectres of the night.

Amor Profanus, de Ernest Dowson


Valentina procura no meio da noite a minha companhia, mas já não estou no apartamento. Não ouço chiar através de sua garganta o miado curto que ela solta quando sozinha – pobre gata. Sua forma egípcia recorta na escuridão o caminho em direção à janela e, dali, ela me vê atravessar a rua lá em baixo.

“Também sem sono?”

“Sede.” – e olho pra barraca de coco onde um gordo dorme no meio das caixas de isopor.

“Imaginei que fossemos nos encontrar.” – sorri.

Está frio. Acendo um cigarro, trago e minha garganta seca ainda mais. Teríamos atravessado a rua ao ver-nos durante o dia, mas a luz alaranjada do poste nos protege. Dou-lhe um cigarro e acendo. Traga. Esperamos o gordo acordar. Não nos passa pela cabeça acordá-lo. Está ficando realmente frio.

Nunca conversaríamos se não fossemos cúmplices, se não soubesse sermos muito parecidos e tão carentes de nós dois a ponto de não conseguirmos evitar nos encontrar. De fato, talvez eu não goste de algo em mim pelo qual me apaixonei antes de poder pensar em conseqüências – já é tarde – e eu sei que deve se sentir assim também. Você vai dizer que não, que estamos certos e é tudo agora e não podemos desperdiçar o tempo pois ele passa, que vamos continuar desenhando esses círculos concêntricos na esperança de virarem pontos. Mas hoje eu pensei que se talvez pudéssemos desperdiçá-lo iríamos finalmente tocá-lo ou afastarmo-nos dele e talvez tivéssemos a chance de realizar alguma coisa, e foi só por um momento que isso fez sentido. Não, não concordaremos. Nunca vamos chegar a conversar desse jeito.

“Vamos caminhar. Ele nunca acorda.” – levanto.

“Está bem.”

E pintamos círculos pra que pareçam pontos.

···

Valentina arranha a porta enquanto giro a chave. A luz subitamente estreita seus olhos e ela corre em direção ao quarto. Apago a lâmpada, deixando que a sala se ilumine pela janela aos poucos, enquanto meus olhos se acostumam. Descarto os chinelos ao lado do batente e sinto o carpete aquecer a sola de meus pés. Vou até a cozinha e encho um copo d’água. No quarto, encontro a gata deitada sobre meu travesseiro com as pernas esticadas e os olhos abertos.

Não, Valentina, você não vai poder ficar.

Ela me arranha.

Estanco o sangue na pia do banheiro.

···

“Faz tempo, já não te vejo acompanhado pela noite.”

“Já era hora de parar.” – digo sem convicção.

“O que vai fazer agora, então?”

“Estou tentando descobrir.”

“Me avise.”

Sorrio.

Eu queria ter certeza, você sabe.


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E pra quem curte um inglês: todos os livros que nunca vamos ler.

sábado

A vida secreta de Bob

Tomava um café amargo. O lápis encima da mesa apontava pro rádio-relógio que piscava - paqueravam. Ninguém diria que seu amor era impossível naquele momento da manhã, não seria legal. Apesar de fascinado, tive que deixar o romance dos dois e descer as escadas, fazer a rua. Alguém precisava pagar o aluguel, comprar comida e apontadores. O primeiro degrau sopesou aqueles dois quilos adquiridos nas últimas semanas e agüentou calado. Agradeci.

Chovia fino como uma ampulheta gigante marcando os dias até o fim-de-semana. Esquecido, o guarda-chuva dormia sobre meu sofá. Atravessei a guarnição vazia do porteiro, a rua, e percorri um pedaço de calçada. Tudo estava realmente vazio até um vira-latas se aproximar de mim perguntando meu destino.

"Gostaria de me acompanhar até o escritório? Hoje, parece, só eu decidi trabalhar."

O cachorro assentiu com a cabeça e partiu na frente. Errou na outra esquina, e de novo, até uma poça seduzí-lo; lambia seu próprio rosto refletido quando o alcancei. Espirrei e ele me olhou curioso detrás de sua barba molhada.

"Cara, deixa que eu guio daqui pra frente."

Reconheci a terceira árvore daquela quarta esquina, estava descabelada, mas ainda de pés secos. Havia algo mais, tínhamos alguma história pra contar juntos e faltava a minha parte. Meu acompanhante latiu e me chamou a atenção pois sabia de algo, só não tinha as palavras. Me concentrei. Admiti que ambos tinham algo em comum e eu com eles. Coisas como vultos no meio da noite, Ana me dizia coisas em meio a vultos, ela dizia... droga, isso não tinha nada a ver com a árvore, com Bob...

Isso! Eu conhecia esse cachorro. Chamava-se Bob como aquele guardanapo, a marca do guardanapo sobre a mesa do Papoula's. Um cara de dreadlocks nos oferecia brincos de arame e eu limpava meus lábios úmidos de cerveja com guardanapo. Claro, estávamos perto do Papoula's, daqui dava pra ver aquela padaria... estava fechada. Domingos e feriados, só nos domingos e feriados. O cachorro sorriu, ele sabia que eu tinha descoberto.

"Você anda bebendo demais, seu babaca."

"Ora, Bob, não seja tão duro comigo."

"Suma da minha frente."

quinta-feira

Pigmaleão

Tinha mangas.
Mordi-as até que virassem caroços.
Cândida viu e disse:
"Agora esculpa minha carne com os dentes."

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Estarei ocupado por um bom tempo, o que deve me tornar um bocado relapso. Mas, pô, tem um arquivo ali do lado.