domingo

... e o gosto de alcatrão na boca

Ah, Lalage! while life is ours,
Hoard not thy beauty rose and white,
But pluck the pretty, fleeting flowers
That deck our little path of light:
For all too soon we twain shall tread
The bitter pastures of the dead:
Estranged, sad spectres of the night.

Amor Profanus, de Ernest Dowson


Valentina procura no meio da noite a minha companhia, mas já não estou no apartamento. Não ouço chiar através de sua garganta o miado curto que ela solta quando sozinha – pobre gata. Sua forma egípcia recorta na escuridão o caminho em direção à janela e, dali, ela me vê atravessar a rua lá em baixo.

“Também sem sono?”

“Sede.” – e olho pra barraca de coco onde um gordo dorme no meio das caixas de isopor.

“Imaginei que fossemos nos encontrar.” – sorri.

Está frio. Acendo um cigarro, trago e minha garganta seca ainda mais. Teríamos atravessado a rua ao ver-nos durante o dia, mas a luz alaranjada do poste nos protege. Dou-lhe um cigarro e acendo. Traga. Esperamos o gordo acordar. Não nos passa pela cabeça acordá-lo. Está ficando realmente frio.

Nunca conversaríamos se não fossemos cúmplices, se não soubesse sermos muito parecidos e tão carentes de nós dois a ponto de não conseguirmos evitar nos encontrar. De fato, talvez eu não goste de algo em mim pelo qual me apaixonei antes de poder pensar em conseqüências – já é tarde – e eu sei que deve se sentir assim também. Você vai dizer que não, que estamos certos e é tudo agora e não podemos desperdiçar o tempo pois ele passa, que vamos continuar desenhando esses círculos concêntricos na esperança de virarem pontos. Mas hoje eu pensei que se talvez pudéssemos desperdiçá-lo iríamos finalmente tocá-lo ou afastarmo-nos dele e talvez tivéssemos a chance de realizar alguma coisa, e foi só por um momento que isso fez sentido. Não, não concordaremos. Nunca vamos chegar a conversar desse jeito.

“Vamos caminhar. Ele nunca acorda.” – levanto.

“Está bem.”

E pintamos círculos pra que pareçam pontos.

···

Valentina arranha a porta enquanto giro a chave. A luz subitamente estreita seus olhos e ela corre em direção ao quarto. Apago a lâmpada, deixando que a sala se ilumine pela janela aos poucos, enquanto meus olhos se acostumam. Descarto os chinelos ao lado do batente e sinto o carpete aquecer a sola de meus pés. Vou até a cozinha e encho um copo d’água. No quarto, encontro a gata deitada sobre meu travesseiro com as pernas esticadas e os olhos abertos.

Não, Valentina, você não vai poder ficar.

Ela me arranha.

Estanco o sangue na pia do banheiro.

···

“Faz tempo, já não te vejo acompanhado pela noite.”

“Já era hora de parar.” – digo sem convicção.

“O que vai fazer agora, então?”

“Estou tentando descobrir.”

“Me avise.”

Sorrio.

Eu queria ter certeza, você sabe.


-x-x-x-


E pra quem curte um inglês: todos os livros que nunca vamos ler.