quarta-feira

O incrível caso de Seu Adorfo

Parece, aconteceu no oeste catarinense. Foi uma dessas coisas que logo todo mundo fica sabendo. Dizem que quando levaram Seu Adorfo pra cidade com uma faca enfiada na testa, ele já tava desacreditado, mas pra surpresa de todos sobreviveu. Trouxeram o velho de volta com a lâmina ainda ali, inválido. Se tirassem, morria. Quem primeiro reparou foi a enfermeira. Havia uma placidez não só no rosto de Seu Adorfo como em todo o ambiente, podia-se morrer em paz na presença do homem, tal tranqüilidade. A mulher, que formou-se na capital, notou também que todas suas dores aplacavam-se ao entrar no quarto do moribundo e em seguida teve uma idéia. Trouxe à presença do homem sua amiga, Amélia, que sendo secretária sofria de dores terríveis nos pulsos. Fez com que ela ficasse por um tempo na presença dele. Curou-se. Isso é o que dizem.

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Seu Honório benzeu a faca que usava pra degolar carneiros e matou uns três homens com ela durante o Contestado. Apostavam quem sobreviveria por mais tempo enquanto os diabos estrebuchavam no chão. Antes de morrer, já com o rosto macerado, deixou a arma pra seu filho, e lhe falou: "Não há quem possa lhe ferir, Jorge, enquanto tu empunhar essa faca, porque quem benzeu ela foi José Maria, e se eu hoje morro é porque ela te pertence", e lhe deram um último cigarro. Jorjão tornou-se violento e temido, e toda vez que seu Onofre da Bodega o via atravessar o batente da porta, escondia a cachaça e servia uns amendoins torrados. Não se falava de política.

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A pequena Inez nasceu cega. Não chegou a ver sequer o rosto de seus pais. Todos sempre acharam isso muito triste. Dona Maricota, que nascera no Paraná, era benzedeira e desde cedo a criança foi levada a sua presença para que por meio de infusões se tratasse de sua cegueira. Não pagavam nada, não precisava. A senhora sempre lhes dissera que não tinha certeza se seus poderes poderiam realizar tal façanha. Caso conseguisse, seria um sucesso de tal forma fabuloso que sua própria satisfação era pagamento. A enfermeira ficou sabendo do caso por Amélia, quando da cura de suas dores, pois Inez era sobrinha de uma conhecida do trabalho. Condoída, decidiu que valia a pena tentar. Convenceu a família e levou a garota à presença do velho. Diz-se que a menina foi aos poucos recebendo a visão, como de uma névoa que subitamente se dissipa de dentro dos olhos. Chorou. O caso saiu num jornal.

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Na terceira vez que veio a público, o caso de Seu Adorfo foi transmitido em rede nacional. A ele, alegavam a cura de dezenas de pessoas; as enfermidades iam de dores nas costas a doenças mortais. Corria a boca pequena que se cobrava dos que apareciam lá por ajuda, mas durante a reportagem a enfermeira desmentiu o boato. O fato é que os poderes de Seu Adorfo já eram largamente conhecidos nas localidades próximas, e se considerava a canonização do velho. Imprimiram-se santinhos com a foto do homem estampada, e diz que um desses colocado sobre a fronte gelada de Genivaldo, canceroso das proximidades, alcoólatra, vilão, o salvara. Logo depois, mandou rezar uma missa, emendou-se, e hoje trabalha para igreja e promove novenas em nome de Seu Adorfo. Ouvi que a enfermeira ficou muito feliz ao saber do caso.

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Findava a tarde e os pássaros gorjeavam no entorno da Bodega. Onofre servia a saideira ao velho quando avistou, virando a esquina, Jorjão aproximar-se já trocando os pés. Era conhecido que nos idos tempos de mocidade, Seu Adorfo, por conta de uma dívida de aposta, surrara seu Honório na frente da rinha. Eram inimigos desde então. Havia ainda o boato de que a briga ocorrera, não por dinheiro, mas pela paixão que ambos dispensavam a Cidinha, que por nenhum se interessava. Jorjão meneou a cabeça num cumprimento agressivo – que o Seu Adorfo sequer respondeu – e pediu uma branquinha. Virou.

"Seu pai, onde quer que esteja, deve se envergonhar do traste que criou."

"Ora, deixa disso."- Onofre disse em voz baixa, serviu a cachaça e afastou-se do balcão.

Jorjão beliscava o amendoim. O velho bebia sua cerveja com calma. Ao terminar, levantou, pôs o chapéu, aproximou-se do bêbado e cochichou algo em seu ouvido. Houve um estalo, um copo quebrou-se no chão, um estampido, e depois os dois sangravam caídos em frente a seu Onofre da Bodega, cuja garrucha tremia em sua mão. Atirara tarde demais, Jorjão já havia enterrado 7 centímetros de lâmina dentro crânio de seu inimigo.

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Uma junta médica foi convocada a estudar o caso de Seu Adorfo. Espantaram-se, analisaram, e decidiram retirar a faca do crânio. Houve um burburinho pela localidade, as opiniões se dividiam. Por um lado, havia quem dissesse que era a Providência Divina a responsável pela desgraça do moribundo, e que não se deveria ir contra a vontade do Todo Poderoso; por outro, era de uma crueldade desmedida manter o velho naquele estado. Chamaram a polícia, retiraram o homem da casa e levaram pro hospital. Protestos de ambos os lados, abaixo-assinados, correria, ouviu-se até tiros. A enfermeira nada declarou. Às onze horas da noite daquele dia, os médicos terminaram a cirurgia. Não houve jeito, quando retiraram a faca, Seu Adorfo prontamente morreu.


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Mandei pra Off Flip. Não ganhei nada.