terça-feira

Um mau dia pra encontrar com Bruno

"Acho que hoje ele acordou com aquela azia."

"Por quê?"

"Não sei dizer direito. Foi o 'alô', de repente."

"Não dá pra dizer uma coisas dessas só pelo 'alô'."

"Claro que dá."

"Tá, mas e daí? Não é melhor voltar outro dia?"

"Tem que ser hoje."

"Hoje, não sei, tá ruim."

***

Bruno lava a louça com cuidado. Tá um pouco cansado, mas lava com carinho. Cuida pra não deixar nada incrustado, esfrega bem os pratos e revisa enquanto enxágua. Pra além da espuma, antevê seu traseiro aconchegado sobre a almofada do sofá, a mão já seca manipulando o controle remoto, os canais passando. Mas, como que através de um choque, de um véu que se rasga muito rápido, ele atravessa várias camadas de consciência de volta à cozinha onde acaba de escutar um barulho. Foi o clique malfadado da pistola de Bezerra que embuchou e, logo depois, explodiu lançando fagulhas de pólvora flamejante em sua esclerótica. O pobre coitado leva as mãos aos olhos mal acreditando na dor, enquanto Bruno ainda não entende direito o que está acontecendo.

Antero atravessa a outra porta, a que dá pros fundos da casa, em direção à cozinha. Por um momento, o sofrimento de Bezerra distrai ambos. Então, num desses milésimos de segundo em que o tempo reembaralha o monte de cartas e o destino distribui as apostas, Bruno lança um prato de duralex contra Antero, que atira. Mas atira pra longe, sem cuidado, parece que nunca atirou na vida.

***

Certa vez, a polícia perseguia Antero e Bezerra. Estavam num opala e metiam pelas vielas do Menino Deus, o motor urrando. Tava difícil, era um daqueles oficiais teimosos, dos que acreditam na lei. Antero, que sempre ia no carona, vez que outra arriscava um pipoco. Pra não dizer que errou todos, acertou o pára-brisa uma vez. Lá pelas tantas, o Bezerra se manifestou:

"Mas pára de de gastar munição, tchê! Daqui a pouco o brigadiano desiste com pena de ti!"

"Só mais um!"

E só então deu o tiro que parou o policial. Mas nem matou, não.

***

Aí que o prato voou e deu na garganta de Antero, que prontamente tombou. Bruno sentiu aquela pontada, uma acidez forte no estômago e soltou o arroto aziago. Lembrou novamente do seu televisor abandonado, o solitário e convidativo sofá que o chamava para sentar. Quanto trabalho ainda seria necessário para que ele pudesse finalmente relaxar?

Recolheu as armas, amarrou os capangas a pernas diferentes da mesa e fez a ligação. Decidiu que era melhor esperar com um café passado, o que lembrou-o da necessidade de lavar o bule enquanto esquentava a água. Os olhos de Bezerra ainda ardiam, então Bruno limpou-os como pode, gesto que o primeiro não deixou de agradecer. Depois dos breves segundos de violência, os três pareciam senhoras prestes a tomar um chá com biscoitos. Havia uma amenidade agradável na cozinha que Antero não pode deixar de sublinhar com um suspiro.

Bruno então tomava seu café, quando, ainda antes de de chegarem os policiais, interrogou os bandidos a fim de descobrir o mandante do assassinato. Bezerra achou certo colaborar e convenceu-o de que a vingança não deveria tardar, pois logo todos saberiam da prisão. Após a saída dos brigadianos, Bruno passou a mão pelas almofadas do sofá e viu seu reflexo pálido na TV desligada. Jogou o olhar para fora, através da janela onde as cortinas enfunavam, sua expressão agora mais amarga, os olhos meio fechadinhos. Mais uma vez, o sofá devia esperar.

segunda-feira

Carta da Guerrilha

Querida Ana,

Hoje marchamos quinze quilômetros. Meus pés sangraram desde o quinto, mas não houve pausa o suficiente para que eu pudesse trocar as meias. O Rodrigo me admoestava a cada quinhentos metros por nomes, chamava-me de franguinho, de bucetinha, mas eu via que ele mesmo estava cansado. Comemos enquanto andávamos, limpamos as armas na chuva que caia e depois secâmo-las em com nossas próprias camisas torcidas pois alguém avistara uma patrulha.
Não houve muito tempo para a preparação. Um tiro logo espocou ao longe e nos engajamos. Ainda garoava e o lodaçal nos impedia de correr. As armas disparavam quando em muito e logo os homens se espetavam com as baionetas. O sangue corria diluido, como se não valesse muito. Rodrigo correu degolado a minha frente e ainda matou um cavalo. O homem montado quebrou a perna e mais tarde encontrei-o ainda sofregando um último respiro, parecia um porco tentando levantar o sabre. Eu procurava em meio as poças de sangue um dente meu, sei lá porquê. Um índio me disse que parasse pois já apagavam as fogueiras com medo de encontrar outra tropa. Os homens precisavam descansar.
Quando me dei por conta, olhava o teu retrato. Todos os outros dormem agora, mas eu entendi que precisava te escrever. Não sei se tem alguma coisa a ver com a batalha de hoje. Nem sei porque eu conto, devia mesmo era dormir. O sono não bateu e quando eu vi já acendia o lampião a procura da foto. Acho que procurava um abraço nela. Não tem nada, só teus olhos meio baços de choro, essa sobra de despedida. É mais uma lembrança das coisas que eu perdi, algo mais longe de casa, mais saudoso ainda. Mas não é tua culpa, é minha. Eu não entendia a saudade quando aceitei esse retrato, era só uma idéia longíqua disso de agora.
Acho que era nisso que eu pensava quando comecei a escrever. Eu matei um deles hoje, Ana. Abri o ventre dele e o vi cair de olhos arregalados sobre suas vísceras e de repente pensei que podia ser eu com as vísceras no chão, que por uma fração de tempo era eu mesmo no chão de olhos arregalados sem entender de onde tinham saído aqueles orgãos e a pressão baixando, meu sangue correndo e as lembranças de casa se apagando. Me deu um desespero porque eu não queria te esquecer, porque era como se tivesse algo naquela água que diluisse todos nós. Então agora pouco eu procurei tua foto e só achei tua despedida, mas eu preciso de algo de antes. Por isso eu queria te pedir pra procurar outra e me mandar, que essa aqui não serve. Essa só vai me trazer mais tristeza.

Com amor,
Do teu Ruas.