segunda-feira

Rascunhos

Voltaram as noites insones. Sinto no peito como um peso, uma angústia pesada, tangível e bem dentro dos pulmões. Há sintomas - talvez seja algum tipo de doença, mas não consigo acreditar nos médicos. Acho que não há médicos suficientes pra me fazer acreditar em médicos. Há sintomas - talvez eu devesse tomar algum remédio, mas não gosto de remédios. Existe algo na compleição de quem vende remédios... não sei, muito desgosto.

Queria voltar a dormir, mas agora decidi escrever essa carta. Era pra falar sobre a falta de sono, mas na verdade eu não devia estar escrevendo. Preciso trabalhar amanhã, e isso me desvia do objetivo principal, que era escrever uma carta pra você. Está ficando confuso.

Esse quarto fica vazio no escuro. É estranho, porque com a luz acesa é tão cheio de coisas e quando apaga só ficamos eu e o computador. Ele pisca. É como se me paquerasse. Aí eu decidi levantar e escrever essa carta. Mas acho que vou deixar gravado aqui, não tem ninguém pra quem eu quero mandar.

Oi, eu sinto saudade. Mentira, eu queria sentir saudade. Talvez seja rancor. Definitivamente saudade. Eu queria poder brigar contigo: rancor e saudade.

É possível que, se eu escrever por muito tempo, sem parar, saia uma carta decente. Dizem que, dada uma quantidade infinita de tempo, até os macacos poderiam escrever Shakespeare. Nada contra os macacos, é um exemplo hipotético. Coisa de matemático. Enfim, uma ideia pra um experimento: talvez se eu ficar sentado aqui tempo suficiente, apareça uma carta que eu queira mandar.

Voltaram as noites insones. Não acredito em médicos, nem remédios: é muito desgosto. Nos remédios, não em mim. Queria voltar a dormir, mas sinto um peso no peito, dentro dele, como se estivesse cheio de aranhas. De qualquer forma, agora decidi escrever essa carta. Preciso trabalhar amanhã, mas tem certas coisas que não consigo mais adiar. Esse quarto parece muito vazio e quente, mas é só a minha impressão, por causa dessa coisa que me incomoda. É que eu queria ligar pra brigar contigo, mandar tu parar de gastar dinheiro com bobagem ou sei lá. Mas já são quase quatro, e eu acho que não tenho esse direito, não mais. 

Eu queria escrever uma carta pra mim. Eu queria escrever uma carta de amor pra mim, e agora fico escrevendo coisas como alguém que fala consigo mesmo. Eu não falo comigo mesmo, eu escrevo comigo mesmo. Puta troço maluco.

Eu não tenho insônia. Eu tenho angústia, e fico acordado pra ver o tempo passar. Dormir seria bem melhor, mas eu quero me maltratar, quero ver o tempo morrer diante dos meus olhos injetados de sono. Eu quero ver o que tem do outro lado do tempo.

A história do cara oco.

Enoch, o assassino perfeito, fulmina vitimas com o olhar. Corre na escuridão, em silêncio, cada passo sugere uma uma perturbação inexistente. Enoch, capaz de desaparecer, de deixar de existir, de corroer a lembrança, de apagar o passado... não, de obliterar o passado, de cegá-lo, de desaparecer na imensidão que é o passado. Um assassino que não existe, cuja ausência incandescente esvazia o corpo e consome todos os orgãos internos e cujo o gesto invisível nos tange a alma no oscuro da noite. Enoch, o amante perfeito.

"Atravesse insone a madrugada, atravesse com voracidade, engula a noite."

 Bebamos.

"O vazio não existe." - digo ao assassino. "A noite é a pretensão do vazio, a permissividade de uma ausência que não existe, pois tudo aí está. Eu vejo casas, eu vejo carros e ruas e hidrantes, cancelas, garrafas, todas vazias e tudo aí está. Todos os homens deitados, todas as folhas empilhadas e assinadas, tudo submetido a voragem do mundo, o grande moedor, tudo épico. O vazio não existe."

Enoch ri.

"Hoje eu matei um homem. Entrei em sua casa e o arremessei pelo beiral. Estrangulei suas tripas."

"Hoje?"

"Faz pouco tempo. Corria solto nos parques como um cachorro. Se debatia ao volante, queria mais. Não sabia o quê. Era forte, tinha um metro e noventa. Matei um homem hoje, e agora preciso beber."

Enoch, o amante perfeito, cujas mãos invisíveis agarram tripas.

"Esse homem é a prova do vazio, sofria do vazio. Carregava na casca a dor de ser oco, a dor do vácuo sugando tudo, da estrela que se apaga e colapsa para dentro. Eu o matei e ele implodiu."

Enoch, a baleia dos meus sonhos, a massa e o inverso dela, para onde todos olham quando os olhos atravessam o mundo.

Bebamos.